São crianças dos 5 aos 16 anos que rasgam o asfalto e as zonas periféricas colocando a vida em perigo na busca de materiais ferrosos para comercializar. Em muitos casos, esses objectos se misturam com outros utensílios cortantes e explosivos que acabam por comprometer a integridade física destas crianças. as autoridades asseguram trabalho de assistência social para travar a prática, enquanto especialistas defendem o reforço das acções sociais para as famílias mais vulneráveis
Deambular de um lado para o outro à procura de mate- riais ferrosos tem sido o dia-a-dia de muitos menores, um pouco por todo o país, na busca desenfreada do sustento, muitas vezes, com o conhecimento dos próprios progenitores. São crianças dos 5 aos 16 anos que rasgam o asfalto e as zonas periféricas colocando a vida em perigo na busca de materiais ferrosos que, em alguns casos, se misturam com outros utensílios e objectos cortantes e explosivos que acabam por comprometer a integridade física destas crianças.
É o caso de um menor de 7 de anos de idade, identificado por Tomás Javela, que, em Outubro de 2023, no município de Icolo e Bengo, ficou gravemente ferido na sequência da explosão de um engenho explosivo quando tentava procurar materiais ferrosos para pesar. Ainda em Dezembro de 2023, quando tentavam recolher ferros para pesar, sete crianças da mesma família foram gravemente atingidas por um engenho explosivo, duas das quais morreram, na comuna do Alto Binde, província da Huíla. O incidente atingiu um total de sete crianças da mesma família, com idades compreendidas entre os 6 e 13 anos, na comuna do Alto Binde, mas apenas duas morreram.
Já em Janeiro daquele mesmo ano, um engenho explosivo matou uma criança e feriu seis na região dos Bundas, província do Moxico. Outro incidente ocorreu em Maio de 2023, quando um menor de 14 anos de idade morreu e dois ficaram gravemente feridos, no município da Cela, província do Cuanza-Sul, em consequência da deflagração de um engenho explosivo do tipo RPG-7. O incidente ocorreu no bairro Cambango, quando os três menores recolhiam material ferroso (sucata) para comercialização e, ao juntar o engenho não detonado, foram surpreendidos com a sua explosão. Em 2022, a explosão de um engenho não detonado provocou a morte de uma criança e o ferimento de outras quatro, na província do Huambo.
Apesar dos relatos constantes e apelos das autoridades, vários são os menores que continuam imbuídos na prática de recolha de materiais ferrosos, expondo, assim, as suas vidas ao perigo, sobretudo nos municípios do Cazenga, Viana, Cacuaco e Kilamba Kiaxi. Neste último, o conheci- do mercado dos Correios é o local onde se constata o maior número de crianças a vaguear à procura de materiais ferrosos para comercializar. É o caso de Kilson, 11 anos de idade, que, todos os dias, sai do bairro da Lixeira, no Golfe-2, para o mercado dos Correios com o objectivo de procurar tudo que é ferro para pesar. Entre sucatas e lixeiras, Kilson envolve-se numa jornada de várias horas, correndo riscos de vida, para conseguir o mínimo para ajudar o sustento da família. “A minha mãe sabe que faço isso.
Os ferros que recolho para pesar é para ajudar na compra de comida em casa”, justificou o menor. Abandonar a escola para se de- dica ao ferro Por seu lado, Betinho, 13 anos de idade, preferiu abandonar a escola para se dedicar à recolha de ferros, com a obtenção de um lucro que oscila entre os 5 e 7 mil kwanzas diariamente. Ao OPAÍS Betinho contou que teve de abandonar a escola devido ao lucro que o fero dá, apesar de todo o esforço que empolga para conseguir os valores acima citado. “Sempre que vou à escola o professor não vem. Então prefiro dedicar-me aos ferros.
Mas a minha mãe não sabe que eu peso ferros”, revelou. De quem também a mãe não sabe sobre o trabalho que faz é o pequeno Jhony, de 6 anos de idade, que disse ter sido “arrastado” ao negócio pelos seus amigos Mauro e Pamilson, de 10 e 8 anos de idade, respectivamente. Segundo o menor, sentiu-se atraído pelo negócio devido ao lucro fácil, mas teme ser descoberto pelos pais, que acreditam que o tempo que o menino se ausenta de casa tem sido dedicado à escola.
“Só os meus amigos é que sabem que eu peso. A minha mãe só sabe que, quando saio de casa, vou para a escola. Mas não chego à escola”, frisou. Já António, de 15 anos de idade, afirmou que a actividade que desempenha é do conhecimento da família e que tem ajudado no sustento de casa com os lucros que saem da pesagem de materiais ferrosos. “Os meus pais sabem que faço isso. É com a ajuda do ferro que consigo ajudar em casa e comprar algumas coisas para mim”, assegurou.
INAC com registo de mil e 894 casos de exploração de trabalho infantil
O instituto Nacional da Criança (INAC), por via da sua porta-voz, Rosalina Domingos, mostrou-se preocupado com a situação, alertando sobre os perigos que muitos menores correm com a prática de pesagem de materiais ferrosos. Segundo a responsável, muitas destas crianças enveredam na prática com o incentivo dos próprios progenitores ou outros tutores que instrumentalizam as crianças para fins comerciais, com a argumentação de ajuda no sustento da casa. Alertou que, ao enveredarem para esta prática, esses pais e tutores incorrem no crime de exploração do trabalho infantil, que é punível por lei. Conforme referiu, o relatório estatístico das denúncias recebidas pelo Call Center SOS- Criança, durante o ano de 2023, indica que foram registados um total de 1.894 casos de exploração de trabalho infantil em to- do o país.
Explicou que esses dados fazem parte de um total de 15.830 (quinze mil, oitocentos e trinta) chamadas telefónicas de denúncias de casos de violência contra a criança. Dos dados passados por Rosalina Domingos, destaca-se igualmente que as províncias com maiores índices de denúncias de violência contra a criança foram Luanda, com 3.320; Benguela, com 1.780; Bié, com 1.625; Zaire, com 1.344; Huambo, com 1.131; Malanje, com 894; Bengo, com 710; Lunda-Sul, com 611; Uíge, com 549; Cunene, com 478; Cuanza-Sul, com 453. Já os outros 3.945 casos foram registados nas demais províncias do país. Disse também que das 15.830 denúncias de violência contra a criança registadas do interesse do SOS, foram vítimas 7.358 crianças do sexo masculino e 8.472 femininos.
Sociólogo alerta para o fraco investimento nas comunidades
Por seu lado, o sociólogo José Lourenço considerou igualmente a situação preocupante e pediu maior empenho das autoridades na protecção dos direitos das crianças. Conforme referiu, o Estado deve trabalhar para que se efective, na prática, os 11 compromissos para com as crianças. Disse que a educação na infância é deveras preocupante na medida em que, muitas crianças, por conta da fome, se encontram fora do sistema de ensino por incapacidade de sustentabilidade dos pais, muitos destes desempregados.
Referiu ainda que um dos factores que leva as crianças a esse tipo de trabalho é a falta de investimento nas comunidades para a prática de várias modalidades desportivas que ocupariam a mente dos menores e dariam a possibilidade de surgimento de talentos. “Não basta apenas criticar. Estas crianças devem ser estudadas para compreenderem, com profundidade, quem elas são, onde vi- vem e como vivem, para poderem receber ajuda no âmbito do combate à fome e a pobreza”, defendeu, acrescentado ainda que “é preciso potencializar aqueles adolescentes que podem ser enquadrados nos centros de formações de artes e ofícios após serem cadastrados ou identificados de maneira que eles não se tornem em futuros delinquentes por causa do vício que têm pelo dinheiro”.
Prática força abandono escolar
Por seu lado, a directora provincial da Edução de Luanda, Philomene Carlos, admitiu que o envolvimento de menores no negócio da pesagem de materiais ferrosos tem estado a contribuir para o elevado grau de abandono escolar, situação que preocupa as autoridades de direito. Entretanto, sem avançar números concretos, Philomene Carlos disse que, assim como em outros casos, são os próprios pais que incentivam os menores nessa prática, o que não deixa de configurar, igualmente, preocupação. “É a mesma situação de quando vemos crianças a pedir esmolas. É que há muita criança na rua e, muitas vezes, com o conhecimento dos próprios pais”, alertou a responsável pelo Gabinete Provincial da Educação de Luanda.