Nos últimos cinco anos, o Neves Bendinha, vulgo “Hospital dos Queimados”, registou trinta e três casos de pessoas que tentaram colocar fim à própria vida com recurso ao fogo, segundo os dados apresentados ao jornal OPAÍS pela directora clínica deste hospital especializado em queimadura, Antonieta Guilherme.
As informações revelam que as mulheres são as que mais recorrem ao suicídio por autoimolação e quase todas por conflitos conjugais. Situação considerada alarmante pela directora que apela à construção de famílias funcionais. De Janeiro a Abril do ano em curso, foram registados dois casos, um de um homem e outro de uma mulher.
O segundo caso aconteceu no passado mês de Abril que envolveu uma mulher de 39 anos que teve 40% da extensão corporal queimada, tendo, infelizmente, resultado em óbito. De acordo com a directora clínica, é a segunda vez que aquela jovem tentou atear fogo ao próprio corpo, em protesto a problemas com o cônjuge que, no momento do acontecimento, em sua residência, teve de impedir que a mulher puxasse a filha ao fogo.
A lesada seguia internamento em estado grave no Neves Bendinha, mas, passados poucos dias, deu, infelizmente, o último suspiro. Os números que apontam para uma redução com relação ao ano de 2020 em que foram registadas dez ocorrências de tentativas de suicídio com este recurso, trouxeram à memória da directora mais um caso: o de um jovem albino que vivia com o pai e a avó, tendo recorrido ao fogo para pôr fim à vida, por achar que não arranjava namorada por causa da sua condição de pele.
Ademais, foi possível saber que a falecida mãe do infeliz também havia cometido suicídio, ou seja, aquela família estava a vivenciar dois episódios de autodestruição. Por conseguinte, dados fornecidos pela directora clínica, Antonieta Guilherme, apontam que o petróleo e a gasolina são os agentes lesivos mais utilizados pelas “vítimas delas mesmas”.
O documento cedido pelo hospital especializado em queimaduras, Neves Bendinha, não detalha o número exacto da diferença entre mulheres e homens, bairro, ocupação e quantos foram a óbito. Todavia, sabe-se que os casos foram todos de adultos, e na sua maioria mulheres dos 25 aos 45 anos, e as causas se prendem em temas familiares, com maior incidência às adversidades com o parceiro.
De acordo com a directora clínica, depois de se verem desfiguradas, algumas mulheres demonstram arrependimento, mas este sentimento aparece muito tarde.
Estigma afugenta as vítimas do pedido de ajuda
O jornal OPAÍS tentou o contacto com duas vítimas que tentaram suicídio com o recurso ao fogo, mas não teve sucesso, pois, estas, mesmo sensibilizadas, recusam-se a falar sobre o assunto. O estigma, particularmente em torno de transtornos emocionais, faz com que muitas pessoas que pensam em tirar suas próprias vidas ou que já tentaram o suicídio não procurem ajuda e, por isso, não recebem o auxílio que necessitam.
É comum ouvir, até no meio dos especialistas, que todas as pessoas propensas a cometerem suicídio apresentem sinais como o de tristeza, agressividade ou o isolamento do seio envolvente. Em função dos acontecimentos, Hélio Mutunda, psicólogo da mesma instituição, refere que o indivíduo que tenta atear- se fogo, ou atear numa residência habitada, assumindo o risco de produzir a sua própria morte, encontra-se desgastado emocionalmente, condição que gera a depressão grave, levando-o a pensar que o suicídio termina todas as dores.
O psicólogo, que tem a missão de trabalhar com o paciente suicida de modo a entender os sentimentos, comportamentos e reais causas, bem como ajudá-lo a lidar com a situação, manifestou-se preocupado, porque raramente casos desse género chegam a eles, uns porque não resistem aos ferimentos e acabam por morrer, e outros por rejeição ao acompanhamento.
Paciente pode viver com sequelas psicológicas e défices de funcionalidades
As lesões por queimaduras estão associadas a um risco significativo de mortalidade, bem como de sequelas físicas, funcionais e traumas psíquicos nos sobreviventes, caso o paciente não aceite a equipa multidisciplinar de tratamento, segundo a directora clínica, Antonieta Guilherme.
Além disso, dependendo da extensão e profundidade da queimadura, os custos económicos para os serviços de saúde também são substanciais, “o internamento de paciente queimado é longo e caro, pois, mesmo com alta hospitalar, continua a beneficiar dos serviços de fisioterapia e curativos ambulatórios, podendo durar mais de um ano”, disse.
A não consumação do acto, segundo o psicólogo, pode agravar o quadro depressivo do paciente, gerando o distanciamento do indivíduo do meio que o cerca, causando irritabilidade, ansiedade, insónia, negação, e pode ainda desenvolver perturbações mentais, condição que vai exigir a integração de um psiquiatra. As consequências não param por aí, de acordo com Antonieta Guilherme, directora clínica da unidade hospitalar supracitada, uma vez que as vítimas de queimadura graves podem experimentar uma gama de complicações.
“Insuficiência renal, anemia, retracção muscular, câncer de pele, problemas respiratórios, amputação de membros e infecçoes generalizadas são algumas das complicações causadas por queimaduras com grande profundidade e largas extensões corporal”, disse.
A gravidade para os adultos começa a partir de 20% da extensão corporal. Todavia, “áreas nobres”, como a face e os genitais, são de grande risco. Ademais, frisa que, pacientes imunodeprimidos em consequência da desnutrição, HIV, cardiopatia, hipertensão ficam mais susceptíveis à gravidade, em caso de queimaduras.
Rejeição do tratamento é frequente
A abordagem do paciente com grandes extensões e profundidade de queima- dura é multidisciplinar, envolvendo o médico-cirurgião, o enfermeiro, o psicólogo, o psiquiatra e o fisioterapeuta, que devem ter em atenção à intervenção precoce, de modo a devolver para o paciente o alinhamento dos movimentos e o fortalecimento muscular.
Ainda no ambiente hospitalar, Eurídice Pinge, fisioterapeuta do Neves Bendinha há 26 anos, garante que é essencial ter a intervenção do fisioterapeuta desde o primeiro dia de internamento, uma vez que a fisioterapia possui acção redutora dos efeitos da lesão na pele, assim como a recuperação funcional dos membros.
No entanto, apesar da notável importância da fisioterapia na atenção ao paciente queimado, o facto é que os que se ateam fogo demonstram inconsistência psico-emocional pelos transtornos de comportamento que carregam, sendo este o grupo que mais se baldam ao tratamento, chegando mesmo a abandoná-lo quando lhes é dada a alta hospitalar. “Fazem resistência e depois abandonam. Posteriormente, regressam com sequelas graves que, muitas vezes, é necessário reinternar para operar as contraturas”, lamenta.
Avança ainda que a fisioterapeuta deve acompanhar todos os procedimentos para avaliar as dificuldades que o paciente trouxe, desde o momento da entrada na unidade sanitária, de modo a averiguar outras lesões. “Quanto mais rápido se der a assistência, melhor, porque, depois de 48 horas, já se apre- senta outras complicações, como a contratura, atrofiação dos membros e retracção articular, ou mesmo uma lesão crónica”.
Dessa forma, faz-se necessária a realização de condutas para manutenção e optimização das funções corporais que, se não receberem intervenção atempada e contínua, podem reduzir consideravelmente a qualidade de vida do paciente e reflectir negativamente na saúde dos familiares próximos.
“Urge a necessidade de ressignificar o conceito de família”
Dados mostram que é no seio do mais importante núcleo, a família, onde é suposto encontrar protecção, compreensão e amor, é, no entanto, o meio mais hóstil. De acordo com o sociólogo Zoro- babel Mateus, fruto da pressão social e dos atropelos na constituição e educação familiar, muitos valores se vão perdendo, fazendo com que se esqueça o motivo pelo qual a família foi constituída, pelo que considera ser importante ressignificar o conceito de se ser e estar em família. “É necessário que se olhe para o suicídio de forma mais abragente e consciente, visando as suas implicações familiares e sociais.
Deve-se entender que a ideia não é só a de tirar a própria vida, mas de que outras pessoas envolvidas também percam a vida, ou seja, é uma tentativa de se eliminar a família, pois, é uma acção que traz reacções nefastas”.
As famílias são a base das sociedades, dessa forma, faz-se necessário a realização de condutas de manutenção e optimização do grupo social mais importante na construção do homem, tornando-se essencial, esclarece, o conhecimento dos factores de risco, que passam pela desestruturação familiar, desvio de conduta por parte dos membros e replicação da mesma acção, consubstanciando-se em tendências graves de descontinuar o conceito família.