O projecto surgiu em finais de 2020, por iniciativa de Aniceto da Silveira, jovem de 37 anos de idade, formado em direito, que decidiu transformar a sua própria residência, situada no bairro da Estalagem, zona Km 12, em biblioteca comunitária para dar vida e sustentabilidade ao seu propósito que visava levar os livros ao encontro dos leitores.
Ao jornal OPAÍS, Aniceto contou que a ideia de lançar um projecto dessa natureza surgiu há sensivelmente seis anos, quando, na altura, enquanto estudante de direito, enfrentava imensas dificuldades para obter materiais didácticos para o apoio da sua formação.
Explicou que, ao longo do tempo, se via obrigado a percorrer inúmeras distâncias e gastar muito dinheiro para obter um livro ou um manual de consulta que lhe servisse de suporte para os trabalhos universitários.
Em meio a estas dificuldades, que também assolavam os outros estudantes na sua comunidade, Aniceto optou por passar a coleccionar livros em sua pequena prateleira e poder partilhar voluntariamente com outras pessoas que o solicitassem.
O mesmo adianta que fazia publicações nas redes sociais a disponibilizar-se para conceder livros por empréstimos a quem quisesse ler, com o compromisso de devolvêlos num prazo de 30 dias. Assim, nasceu o primeiro “pilar” do projecto “Leitura ao Domicílio”.
“Na minha condição, havia tantos outros jovens estudantes como eu, que não tinham a possibilidade de comprar livros ou manuais de apoio.
Então, tomei a iniciativa de começar a dar livros por empréstimo a quem precisasse, mas que tinha que devolver num período de trinta dias”, começou por explicar o jovem.
Sem apoio, sem patrocínio e apenas com o desejo insaciável de ajudar quem precisasse, no campo do ensino e da leitura, Aniceto dedicava-se a levar os livros a quem solicitasse, voluntária e gratuitamente, comprometido com a causa de transformar a vida de outras pessoas por meio dos livros.
Primeiro passo com apenas oito livros
Inicialmente o projecto surgiu com apenas oito livros, dos quais maioritariamente manuais de direito e apenas duas ou três obras literárias.
Apesar de serem pouquíssimos, ainda assim, Aniceto disse não ter se inibido e continuou a ceder os seus “escassos” livros a quem solicitasse, correndo o risco de os perder num estalar de dedo.
Segundo conta, devido à pouca disponibilidade de livros, as pessoas eram ‘obrigadas’ a esperar vários dias para poderem ler uma obra, uma vez que esta estivesse em posse de outra e não havia livros suficientes para distribuir a vários solicitantes ao mesmo tempo.
Com que ao passar do tempo, outras pessoas, que se apercebiam do projecto por meio das redes sociais, passaram a apoiar a iniciativa, doando livros ao jovem para preencher as prateleiras da biblioteca e permitir que mais pessoas pudessem ler sem qualquer restrição.
Com o auxílio das redes sociais, o jovem passou a partilhar com um público mais abrangente e diversificado a sua paixão pelos livros, tornandose, despercebidamente, um “influenciador e impulsionador literário” para quem o seguisse e gostasse de leitura.
Assim, pouco a pouco, a iniciativa passou a ganhar notoriedade e foi recebendo cada vez mais doações de livros, ampliando a sua “galeria” que, actualmente, conta com mais de 1500 livros disponíveis para leituras gratuitas.
Transformou a casa em biblioteca comunitária
Com o surgimento de mais livros que aumentavam consideravelmente a cada mês, Aniceto explica que precisava de arranjar um espaço adequado para guardar e/ou expor os livros, colocando-o à disposição de quem quisesse lê-los.
“Em 2021, recebi a oferta de 800 livros doados por um único senhor e, como não tinha espaço para colocá-los, tive que meter na minha casa.
De seguida, surgiu mais alguém que me ofertou 300 livros, todos eles da área de contabilidade, e daí foram surgindo cada vez mais pessoas a oferecerem-me livros e a casa já estava a ficar sem espaço. Eu precisava resolver essa questão”, detalhou.
Mais interessados e mais doadores fizeram com que o jovem arranjasse um espaço adequado não apenas para acolher os livros, mas também para acomodar quem quisesse ler, uma vez que surgiam também pessoas interessadas em ler, mas que não tinham um espaço propício para tal.
Nesta senda, Aniceto da Silveira, após ter conversado com sua esposa, decidiu transformar a residência em Biblioteca e mudouse com a família para um outro lugar onde reside até hoje.
Denominada “AS Leitura”, a biblioteca comunitária alberga mais de 50 crianças, e tem servido de “cantinho de refúgio” para os amantes de livro e impulsionador dos hábitos de leitura no seio da comunidade daquele distrito do município mais populoso da capital do país.
Aulas de alfabetização
Além de ser uma biblioteca, a “AS Leitura” é também um centro de alfabetização onde são ministradas aulas de Língua Portuguesa, Matemática e Cultura Geral a crianças que se encontram fora do sistema de ensino.
Se, por um lado, a biblioteca impulsiona o gosto pelos livros e hábito de leitura, as aulas de alfabetização constituem a parte que procura reduzir o índice de analfabetismo que afecta maioritariamente crianças e jovens naquele distrito.
Para dar suporte à parte pedagógica, Aniceto conta com o auxílio de duas jovens que trabalham como professores e ajudam as crianças a melhorar a aptidão de leitura, escrita e cálculos matemáticos.
Maria Dorca, jovem de 18 anos de idade, é coordenadora dos “kanucos” da biblioteca e trabalha como professora de Língua Portuguesa e Literatura, estando encarregue de ensinar os pequeninos a ler e escrever, e aos que já sabem, aprimorarem as habilidades através de exercícios contínuos de leitura e escrita.
A par do ensino escolar, Maria Dorca também ensina os pequenotes a comporem textos poéticos e a declamarem suas próprias poesias, transformando os pequenotes em potenciais poetas e poetisas.
Para aquelas crianças que não sabem ler e escrever, o meu trabalho é ensiná-las, mas para aquelas que já têm este domínio, eu as ajudo a aprimorar o lado poético, fazendo com que elas aprendam a escrever poesias e a declamarem os seus próprios textos sem receio”, disse a jovem, mostrando-se empolgada com o seu trabalho.
Dorca disse ser também responsável pela coordenação de actividades extracurriculares que envolvem as crianças da biblioteca, sobretudo no domínio da leitura, escrita ou da poesia.
Crianças sentem-se transformadas pelos livros
O hábito de leitura cria impacto directo na forma de pensar, agir e de ser de qualquer pessoa, seja jovem, adulto ou criança.
Leituras constantes melhoram a capacidade de raciocínio e de percepção do indivíduo, assim como ampliam a sua visão sobre as coisas e situações e a sua capacidade de argumentar.
Nestes benefícios, foram-no elucidados pelos próprios meninos do projecto “AS Leitura” que afirmaram sentir que suas vidas foram transformadas desde que passaram a cultivar o hábito de ler todos os dias.
Leonardo dos Santos, de 13 anos de idade, pertence ao projecto há menos de dois anos e diz que os livros melhoraram consideravelmente a sua capacidade de aprender, de se comunicar e de compreender as coisas e situações à sua volta.
“Os livros mudaram muita coisa na minha vida, me ajudaram a melhorar a minha forma de falar, de pensar e de perceber as coisas.
Quando estou na aula, por exemplo, algumas coisas o professor não precisa explicar muito, eu percebo rápido e, quando ele está a ditar, já consigo escrever as palavras difíceis com menos dificuldades”, afirmou o menino.
Com 15 anos de idade, Cândido Domingos é também um dos membros do grupo de leitura há mais de dois anos, que encontrou nos livros um grande facilitador da compreensão das coisas, sobretudo as que estão relacionadas com a escola.
O adolescente, que frequenta a oitava classe, contou que foi graças aos livros que agora consegue conversar sem vergonha e expressar as suas ideias e opiniões em sala de aula ao público.
“Na escola, quando a professora pergunta algo ou pede uma opinião, eu já levanto sem vergonha e apresento as minhas ideias ou dou a minha contribuição na aula”, expressou o menino que tem por preferência as obras do escritor angolano Jofre Rocha.
Projecto cria intercâmbio literário entre Angola e França
De acordo com Aniceto Silveira, o projecto tem criado um intercâmbio no domínio da literatura e outras artes com instituições culturais de França, contando com apoio de angolanos residentes em solo francês.
O responsável referiu que uma das ambições do “AS Leitura” é poder ajudar a expandir e promover a literatura nacional em outras geografias.
A iniciativa tem propiciado encontros virtuais entre crianças de Angola e de França no domínio das artes, como poesia e literatura, permitindo que cada uma beba um pouco da cultura dos dois países.
“Nós temos criado uma espécie de “meeting” entre os nossos alunos e algumas crianças de França, sobretudo filhos de pais angolanos que residem lá, para permitir que elas tenham um intercâmbio no domínio da literatura e poesia”, contou.
Acrescentou ainda que os meninos têm procurado apresentar obras de escritores angolanos aos cidadãos franceses e vice-versa.
Fez saber que um dos meninos já chegou a declamar uma poesia de Agostinho Neto e apresentar uma biografia do primeiro presidente da República de Angola, por videoconferência, numa feira cultural de uma das cidades de França.
Desde a sua fundação, o projecto “Leitura ao Domicílio” vem realizando diversas actividades que visam promover os hábitos de leitura nas comunidades periféricas e combater o analfabetismo.
Têm sido desenvolvidas ainda campanhas de recolha e doação de livros e manuais didácticos a crianças de comunidades carenciadas, como fez saber o próprio líder do projecto.
Importa referir que o referido projecto, que deu existência à biblioteca comunitária, tem contado com o apoio de cidadãos angolanos residentes em França que mensalmente enviam uma quota simbólica para manter a iniciativa em pé.