A primeira cineasta negra a dirigir um longa-metragem no Brasil, Adélia Sampaio, já enfrentou tanta coisa que ouvir perguntas sobre sua vida pessoal é uma situação trivial.
‘Pode perguntar, meu filho, quem está com 75 anos não tem medo de nada”, diz ela, pouco antes de participar num seminário sobre o percurso das directoras negras no cinema, como parte da programação da mostra Directoras Negras do Cinema Brasileiro, na Caixa Cultural, que tinha a previsão de encerrar ontem Domingo, às 17 horas, com a exibição, do seu longo “Amor maldito” (1984).
Até hoje desconhecido pelo público, o filme é um marco na cinematografia brasileira não só pelo ineditismo atingido por Adélia, filha de empregada doméstica, mas também pelo conteúdo absolutamente transgressor para a época. No centro da trama está um romance entre duas mulheres: a executiva Fernanda (Monique Lafond) e a ex-miss Sueli (Wilma Dias).
Quando Adélia tentou pedir financiamento à Embrafilme, recebeu uma resposta não exactamente surpreendente: “Eles disseram que o Governo jamais bancaria uma safadez entre duas mulheres. Foi homofobia. Minha irmã, a produtora Eliana Cobett, recomendou que eu mudasse alguma coisa na trama. Não mudei. O filme foi viabilizado num sistema de cooperativa”.
A homofobia da vida real é um dos temas centrais no roteiro de “Amor maldito”, escrito por José Louzeiro. Quando Sueli comete suicídio, Fernanda é levada aos tribunais e massacrada pelos “valores” machistas e moralistas. No banco dos réus, a mulher é acusada de ameaçar a integridade da família tradicional brasileira e de promover orgias.
Os diálogos dos advogados e de juízes são carregados de tanto ódio e chavões que parecem exagero, mas foram todos pinçados dos autos do processo de um caso real, aos quais Adélia teve acesso. “Não ganhamos nada pelo filme, fizemo-lo por amor”, lembra Monique Lafond. Acrescentando que “a gente não podia desperdiçar película, então tínhamos que acertar as cenas de primeira, o que foi muito difícil, porque praticamente o filme inteiro é uma cena de julgamento”.
A Adélia soube administrar a dificuldade. Como todo bom artista, ela aceita os personagens da vida, a sexualidade das pessoas. Mas, no filme também há flashbacks que capturam momentos de felicidade entre as duas personagens, porque, segundo Adélia, “quando estamos numa pior lembramo- nos das coisas boas, como uma forma de compensar a alma”. Esse é só um dos mecanismos de defesa usados por Adélia para driblar certas agruras.