Pedro Severino é realizador brasileiro. Formou-se em jornalismo.
Queria ser escritor, mas, usando o cinema como caneta, tornou-se, como o próprio refere, num roteirista e director cinematográfico comprometido com “um cinema ao serviço do pensamento democrático e de transformação social”.
Nesta entrevista a OPAIS, o actor fala de cultura, politica e sociedade numa linguagem simples e de compreensão comum a nível da lusofonia de que é, igualmente, parte.
O mesmo fala ainda da sua mais recente longa-metragem e do activismo pelo direito à cidade e contra o desalojamento das populações no Brasil
Do jornalismo, que é a sua área de formação, ao cinema. Como explicar esses dois campos diferentes num único protagonista?
Sou formado em jornalismo, comecei pela dimensão da escrita e de querer narrar acontecimentos reais e da política.
Como nasce esse começo?
Comecei por querer ser escritor. Era o meu sonho, continuei a fazer isso, mas usando o cinema como caneta.
Depois da graduação em jornalismo, fiz um mestrado em realização áudio visual e aí fui ampliando o meu engajamento no campo do áudio-visual, pensando projectos autorais e coisas de ficção de escrita junto com projectos mais colectivos e num cinema ao serviço de um pensamento democrático e de transformação social.
E como se explica o salto para o activismo?
De forma natural. Sou um activista que tenta usar o audiovisual como forma de intervenção e de impactar alguns temas. O tema mais próximo da minha prática activista é a luta pelo direito à cidade.
O que é isso na verdade?
É um direito não tão conhecido como outros direitos humanos, mas é um direito colectivo, que visa pensar a cidade como uma dimensão democrática, como uma forma de produzir espaços de
diferença, de acolhimento e de bem-estar. Como começa esse processo?
Eu moro em Recife, uma cidade no Brasil como várias cidades do mundo, onde a especulação imobiliária domina o planeamento urbano. Isso afecta principalmente as populações mais pobres, a classe trabalhadora.
Quando há um processo de gentrificação muito grande, a especulação imobiliária consome um espaço que era ocupado pelas camadas populares, e isso com desalojamento, deslocação de pessoas, com violência e com um processo muito duro que envolve, às vezes, a conivência do poder público.
Sendo mais específico, foi com estes argumentos que abraçou o activismo?
Certo. Lá em Recife, a partir dos anos 2010, surgiu um movimento chamado Ocupe Estelita, que surge a partir do projecto Novo Recife, visando a construção de um condomínio de luxo numa área pública no centro histórico da cidade.
Então, houve um movimento de ocupação para chamar a atenção e tentar impedir a implementação desse projecto, com isso instaurou-se um debate público importante, tentando pensar um outro horizonte de cidade.
De alguma forma a força do cinema levou-lhe a esta necessidade de abraçar o activismo?
De alguma forma sim. Portanto, participei nesse movimento através do processo de pensar o cinema colectivo, um cinema de urgência e que entrasse nessa disputa mediática sobre a ideia do direito à cidade.
De alguma forma a força do cinema levou-lhe a esta necessidade de abraçar o activismo?
De alguma forma sim. Portanto, participei nesse movimento através do processo de pensar o cinema colectivo, um cinema de urgência e que entrasse nessa disputa mediática sobre a ideia do direito à cidade.
O filme Paraíso Selvagem passa por essa temática. É o resultado este processo?
Sim. Esse tema atravessa todos os meus filmes, a necessidade de pensar na dimensão da desigualdade social.
A desigualdade que acaba por ser das grandes preocupações no Brasil, não?
Sim, o Brasil é um país muito desigual. E essa desigualdade, muitas vezes, opera por camadas, por diferenças que se expressam no racismo estrutural e regional.
Isso acaba por dividir o Brasil se olharmos o país como um todo?
Acho que sim, o nordeste do Brasil é uma região muito pobre no sentido económico, mas é um lugar de muita luta e de muita cultura.
Acho que as soluções mais viáveis e possíveis para o país surgem a partir desse lugar, do norte e do nordeste, como lugares que estão inaugurando uma forma mais colectiva de vida.
Os meus filmes são muito gestados nesse lugar, mas gosto também do cinema de género e de horror.
Como assim?
Ao longo do tempo fui tentado fazer um encontro entre as dimensões sociais e as dimensões estéticas, do filme noir, do thriller, do suspense.
Paraíso Selvagem é esse encontro, pensar a dimensão do território, das populações que lá vivem e sentem o impacto de um projecto de desenvolvimento desigual, é pensar no horror social que isso representa.
Um horror que acontece muitas vezes, sob a falsa ideia de um El Dourado, de um avanço económico, mas um avanço que vem para muito poucos.
No filme tentei lidar com esse real, do projecto portuário territorial da SUAPE, que ocasionou um movimento de defesa das populações e contra ele se levantam muitas vozes.
É tudo isso que retrata o filme Paraíso Selvagem?
Sim…é um filme que se alimenta da situação que provocou o desalojamento de muitas populações, criando um impacto ambiental e urbano muito sério e gravíssimo.
Alguns dos municípios onde filmei, como o Cabo de Santo Agostinho, chegou a ser o mais violento para um jovem negro brasileiro devido à falta de planeamento desse projecto urbano de desenvolvimento.
E como deu a volta por cima?
Fui analisando e entrei em contacto com os grupos políticos organizados. Por exemplo, o Centro de Mulheres do Cabo, que é uma organização política muito importante, trabalha em várias áreas e com questões de género, de raça e de cultura popular.
Fui pensando também pelo lado da narrativa de um imaginário, de horror social, mas associado a um horizonte em que os personagens não sejam definidos apenas pela dor.
Ate que ponto, neste caso?
O personagem principal faz um mergulho em busca das reminiscências do irmão, mas eu quis que fizesse também um mergulho interior, em si própria, para poder dar um outro significado ao trauma e a dor, encontrando uma possibilidade de colectividade e uma ideia de identidade que está no envolvimento, numa cultura que dá força, que cura, que expressa mais união entre as pessoas, dada a necessidade de um reposicionamento no mundo.
É um encontro com a memória colectiva?
Sim, também. O encontro da personagem principal com as suas memórias e com a memória colectiva fazem-na pensar em que horizonte é esse que estamos perseguindo.
O roteiro desse filme foi sendo construindo também pensando nisso, em personagens que têm essa vivência real.
Por exemplo, o Brasil é um dos países onde são assassinados mais activistas ambientais e dos países mais violentos para com os activistas ambientais.
A arte, particularmente o cinema, pode abrir caminhos para o fim dessas atrocidades?
Claro. Portanto, apesar de eu falar disso, ficcionalmente, essas pessoas existem, existiram e lutaram. Muitas dessas lutas são soterradas por uma imagem de um lugar que supostamente vai salvar aquele território, quando isso, na verdade, apenas tem muito de propaganda.
É uma forma de trazer às pessoas a reflexão?
É. Nesse filme quis fazer pensar que a vida de quem luta atravessa o tempo e fá-lo a partir de memórias que podem ser uma ferramenta para quem está lutando no presente.
Portanto, a ideia foi pensar no passado transversalmente ao movimento que traz para o presente e nas possibilidades que podem trazer para uma aplicação do que fazer agora.
“Adoro começar um filme pensando a música do zero”
Qual é a sua relação com as bandas sonoras dos filmes?
Gosto muito de colocar a música para os meus filmes como uma camada quase visual, como se pudesse criar uma fisicalidade e ser uma presença do filme.
O Amaro Freitas usa muito isso, sons de piano preparados e sons de objectos que cria uma dimensão do piano de vibração, de impacto e de ruído. E esse ruído era parte da paisagem interior do personagem.
Considera uma ligação perfeita?
Eu adoro música. Sou um avido consumidor com um interesse especial pelo jazz e em Pernambuco está a acontecer um movimento de renovação do jazz, com músicos que fazem uma espécie de integração entre outros géneros.
O Jazz é a sua praia?
Gosto de navegar noutras praias. Por exemplo, há um género muito forte no Nordeste, principalmente em Pernambuco, que é o frevo, que se escuta muito no carnaval.
Mais recentemente foi criado um outro sentido para esse género, no campo do jazz. São grandes bandas, com muito metal e uma nova geração pegando nisso e traduzindo para um experimentalismo, como o Amaro Freitas, uma grande revelação do jazz, um pianista com imenso talento, pernambucano e recifense, que está rodando o mundo.
Então, o Pedro trabalha a música para o filme?
Totalmente e sempre foi assim. Inclusive há a sensação de que algumas coisas se repetem enquanto a gente vai fazendo filmes e no trabalho artístico.
Adoro começar um filme pensando a música do zero. Sem nenhuma ideia pré-concebida, vamos construindo a música conforme o filme vai sugindo e isso, às vezes, faz com que tenhamos que apagar coisas, as vezes vamos por um caminho, mas durante o filme vou mudando o caminho.
Qual é a experiencia mais recente que teve neste sentido?
Aconteceu no filme Paraíso Selvagem. Foi uma loucura. Fizemos duas vezes a música. Fizemos uma primeira vez, eu e o Amaro e amamos, comemoramos, ficamos super felizes e nos abraçamos dizendo: conseguimos e foi super rápido.
E como fica o processo de montagem?
Eu penso sempre no processo de montagem como uma pintura, em que damos uma primeira mão de tinta, mas às vezes tem que se esperar secar e ser preciso outra camada de tinta por cima e outra e outra.
A tinta que fica na base funcionou para criar as cores da superfície mas quase não a vemos. Com a música acabou sendo assim, tivemos que a refazer toda, mas queríamos dar-lhe a vida do filme e fazer essa integração.
Essa paixão pela música poderá fazer nascer novos projectos? Sou muito apaixonado pela música, particularmente pelo jazz.
E, por acaso, estou trabalhando em dois documentários musicais. Estou a começar um filme documental sobre um grupo de samba reggae, chamado Lamento Negro, que tem uma grande importância histórica, porque está na génese de um movimento musical cultural pernambucano chamado Manguebeat, que renovou a música brasileira, porque juntava elementos da música tradicional, da cultura popular, como o maracatu, o afoxé, o cocô, com o hip hop, o rock e ritmos internacionais.
O outro filme é sobre essa nova cena do jazz em Pernambuco, que tem Amaro Freitas, tem o Henrique Albino, a Sorama e outras várias figuras nesse processo que está em ebulição.
Pretende fazer uma reformulação do jazz?
Sinto que sim, é como se fosse uma projecção com várias camadas e se a gente pensar Pernambuco, tanto tem a dimensão do frevo, como uma pessoa como Nana Vasconcelos, uma referência mundial da música, um dos maiores percussionistas que existiu, que tocou com grandes nomes internacionais.
Estou a fazer uma genealogia, pensar na história do jazz à partir de Pernambuco, até aos dias de hoje.
Quais são as suas expectativas em relação às políticas públicas para o cinema na nova era do Lula?
Com o governo Lula estamos retomando o país no sentido mais positivo que o Brasil pode ser, um país que pensa cultura, diversidade, pensa o meio ambiente, e que tem uma capacidade de diálogo que foi reduzida pela extrema direita a partir de uma lógica muito violenta, de concentração de renda, de supremacia da branquitute, uma lógica anticiência, na verdade antipopular.
Considera o abrir de um novo horizonte?
Com o retorno de Lula, acho que temos um horizonte muito positivo, foi o melhor presidente da história do Brasil sem dúvida, mas foi sobretudo alguém que pensou muito no áudio visual.
Durante as suas gestões implementou-se o projecto de desenvolvimento económico do áudio visual.
As políticas públicas pensadas nessa época restruturaram toda uma teia produtiva que gerou emprego, tecnologia e projecção do Brasil no mundo e numa indústria que não polui.
Isso sabotado tanto pelo governo de Temer quanto de Bolsonaro e penso que haverá uma retomada desse projecto.
Por: Silvia Milonga