Rezas, cânticos e danças tradicionais, assim é recebida a equipa do jornal OPAÍS no Lumbo, tribunal tradicional situado numa das avenidas mais movimentadas da histórica cidade de Mbanza Kongo.
As senhoras de panos e lenços na cabeça entoam canções na língua nacional kikongo para receber, da melhor forma, os visitantes, antes mesmo de acomodá-los frente à tribuna, que é a zona restrita em que só tem acesso o juiz e o seu grupo privilegiado de 25 elementos.
Ao entrar no tribunal, vê-se que não é um tribunal comum. No interior, não há computadores, impressoras ou avolumados montes de papéis como acontecem nos tribunais normais.
No Lumbo, pequenos blocos de nota e folhas soltas constituem principal ferramenta de trabalho dos escrivães.
Outros instrumentos tradicionais, como batuques, sacaias, ajudam igualmente na compreensão de que se está diante de um segmento de actuação diferente de se fazer justiça. No interior do espaço, os protocolos são criteriosamente orientados a cumprir, por ser um local sagrado e de respeito onde a justiça é a bandeira de eleição.
Afonso Mendes, o guardião da corte-real do Reino do Kongo, é o juiz do tribunal. Vestido de roupas próprias, tem o seu lugar cativo.
A cadeira especial, o chapéu e a bengala ou cajado nas mãos demostram, inequivocamente, o poder da mais respeitada figura da corte do Lumbo, Tribunal tradicional do Reino do Kongo, que faz parte do conjunto de órgãos que elevaram Mbanza Kongo ao grau de Património Mundial da Humanidade, atribuído pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), em 2017.
Por lá, para além de conflitos de terra, lutas de poderes, agressões, entre outros diferendos, o feitiço é dos casos mais julgados pela corte.
Só este ano, os dados já apontam para um total de 20 casos sentenciados pela corte do tribunal, que é constituída por um grupo de 25 pessoas. Destas destacam-se os juízes, escrivães, secretários, animadores e conselheiros, que todos os dias recebem queixas que transitam em julgamentos.
A festa do inocentado
Já no tribunal, as partes são novamente convocadas, acompanhadas de testemunhas. Entretanto, em caso de inocência do acusado, o queixoso é obrigado a lavar a imagem desta pessoa, com o pagamento de um porco grande e bebidas tradicionais.
Estes mantimentos, posteriormente, são postos à disposição de toda a comunidade para que esta saiba que a pessoa acusada, afinal, não é feiticeira.
“E toda a gente ali acredita que afinal de contas o fulano não é nada bruxo e assim acabam-se os insultos, porque uma pessoa, quando é acusada de feitiçaria, passa por muitas humilhações”, apontou Afonso Mendes.
Feiticeiros expulsos da comunidade
Já se a pessoa for efectivamente julgada e concluir-se que é feiticeira, ela é aconselhada a deixar a prática. E, em caso de reincidência, a pessoa é expulsa da comunidade, mas sem violência.
O feiticeiro é ainda obrigado a pagar os custos com a medicação, caso seja o causador da enfermidade que acometa a pessoa queixosa.
“Nunca tivemos uma situação de expulsar, porque, normalmente, as pessoas quando são descobertas e comprovadas que são feiticeiras elas, por si só, deixam a prática.
Nós aqui no tribunal fizemos um sério trabalho de aconselhamento”, explicou. Portanto, para além do Zaire, o tribunal tradicional do Reino do Kongo recebe, igualmente, casos do Uíge, Bengo e Cabinda.
As queixas
As queixas de acusação de feitiçaria vão parar ao tribunal através dos pontos focais da corte que, na sua maioria, são os sobas.
Estes são os que recebem as denúncias nas comunidades, dão o primeiro tratamento e, posteriormente, encaminham para a corte na reunião às quarta-feiras, que é feita nas instalações do tribunal.
Depois da reunião, a corte marca um dia para receber as partes, isto é, o queixoso e o acusado de feitiçaria. Postos em tribunal, as partes são ouvidas e todos os seus depoimentos são escritos por um escrivão que, minuciosamente, guarda a cada palavra dita.
Entretanto, nas suas palavras, o queixoso terá de provar por que razão está a acusar o outro de feiticeiro. Conforme explicou Afonso Mendes, guardião da corte-real do Reino do Kongo, normalmente, as acusações são fundamentadas com base em maus-sonhos, doenças em casa, mortes, insucessos na vida e outras situações.
As provas dos factos
Em caso de rejeição do acusado, o também coordenador das autoridades tradicionais local explicou que é criado um grupo de trabalho pelo juiz da corte que, com a concordância das partes, transfere o caso para um adivinhador, especializado no tratamento de revelações e descoberta de feitiço.
Mas este, frisou, deve ser uma figura neutra que não tem qualquer tipo de relação com nenhuma das partes envolvidas nessa troca de acusações.
Todavia, o valor pago ao adivinhador é da responsabilidade das partes. E cada um tem o direito de levar uma testemunha próxima.
Porém, durante o caminho, as partes são recomendadas pela corte a andarem no mesmo transporte para não haver fuga de informação. Por sua vez, o adivinhador, depois de fazer o seu trabalho, deve remeter novamente o dossier ao Tribunal, em envelope fechado, para a sentença do julgamento.
Dias de julgamentos
Os julgamentos e leituras das sentenças são feitas às quartas e sextas-feiras. Para efeitos de transparência e verdade das acusações, a corte do tribunal definiu que as sessões sejam, doravante, abertas ao público que achar conveniente lá estar.
Regras e procedimentos
O tribunal tem modelos próprios para quem lá estiver. A título de exemplo, as pessoas do sexo feminino não podem entrar sem a cobertura de um pano que cubra a cintura até às pernas. Elas também são igualmente proibidas de entrar para o tribunal vestidas de calças e tênis.
Outrossim, é expressamente proibido, com direito à expulsão, o cruzamento das pernas dentro do tribunal, por constituir uma forma de amarrar as palavras de quem estiver a falar perante o tribunal.
Comunicação
Por outro lado, o tribunal tradicional do Reino do Kongo, que tem igualmente extensão na República Democrática do Congo e Gabão, funciona apenas na língua nacional kikongo.
Portanto, toda a corte funciona apenas nesta língua e dispõe de tradutores para fazer a ponte com os leigos desta língua tradicional.