A visita da maior feira literária flutuante do mundo ‘Logos Hope’ foi considerada, por muitos, uma janela oportuna para se poder expandir internacionalmente as obras de escritores angolanos e conhecer o trabalho de autores estrangeiros
Sete dias foi o tempo que o ‘Logos Hope’ esteve em território angolano, atracado, pela primeira vez, no Porto de Luanda, carregando milhares de livros, após vinte anos de espera pela autorização.
O navio chegou ao Porto de Luanda no dia 26 do passado mês de Julho (numa sexta-feira), com mais de 350 tripulantes voluntários, de 65 nacionalidades de diferentes continentes, uma livraria recheada com mais de cinco mil livros de diversas áreas, e uma equipa de jovens disposta à partilha de ideias, conhecimento, abraços e até mesmo de gestos fraternos e acções solidárias.
Com um universo de livros, em 10 línguas diferentes, o navio, construído em 1973, em Valeta, capital de Malta, abriu-se ao público angolano para compartilhar, mais do que livros, experiências de vida, culturas, histórias e vivências entre centenas de tripulantes e a imensidade de pessoas que não paravam de o visitar durante os sete dias de estadia (entre 26 do passado mês Julho a 01 de Agosto) em águas de Angola.
Em território angolano, a maior livraria-navio do mundo veio com a missão, entre outras prioridades, de impulsionar a cultura de leitura e de partilha de conhecimentos no seio do povo luandense, oferecendo uma experiência literária única e inesquecível a todos aqueles que a visitaram.
Além dos livros, o navio agraciou os presentes com sessões de cinema, teatro, gastronomia, artes plásticas e pintura criativa, além de visitas guiadas a alguns compartimentos da embarcação e de pequenas palestras sobre o historial do navio, seus fundadores, experiências de locais por onde passaram, projectos já desenvolvidos e acções por executar.
Em seu primeiro dia no território angolano, o navio, proveniente da vizinha República da Namíbia, foi recebido pelas entidades governamentais angolanas, com destaque para o ministro da Cultura, Filipe Zau, o ministro das Relações Exteriores, Teté António, o governador provincial de Luanda, Manuel Homem, deputados da Assembleia Nacional, numa delegação encabeçada pelo vice-presidente do Parlamento, Américo Cuononoca, directores de gabinetes institucionais do governo e entidades religiosas.
Um “monstro” irresistível nas águas de Luanda
À distância, aquela gigantesca infra-estrutura aquática desperta a atenção e a curiosidade de qualquer um que a contempla, aliciando a vontade de nela subir e viver na primeira pessoa a experiência de estar dentro daquele navio.
Numa ronda feita pelo Jornal OPAÍS, guiada pela jovem indiana Navya Lankadasku, directora de Media e Relações Públicas do “Logos Hope”, a nossa equipa de reportagem, após um insistente e delicado pedido, pôde conhecer de perto alguns compartimentos “restritos” daquele monstruoso navio, que tem mais de meio século (precisamente 51 anos) de existência.
Logo à entrada, na lateral direita, os visitantes são acomodados numa pequena sala de visitas com uma tela gigante, onde são explicados, por meio de uma pequena palestra com projecção de vídeos e imagens, sobre o funcionamento do navio, sua data de fundação, serviços que ele oferece e, o mais importante, a variedade de livros que a biblioteca tem disponível em diversas áreas de espacialidade.
Além de uma vasta biblioteca, o enorme navio de três andares é composto por inúmeros compartimentos, dos quais grande parte deles servem de residências e aposentos dos tripulantes.
Tem ainda um vasto refeitório com capacidade para acomodar mais de 80 pessoas de uma só vez, além de salas de reuniões, espaços de lazer, ginásio, quadras desportivas, campo de ténis, voleibol, e uma espaçosa zona de serviços (lavandaria).
Com o auxílio da guia, a equipa de reportagem deste jornal constatou ainda a existência de um pátio espaçoso, situado no último andar do navio, com capacidade para abrigar pelo menos 10 viaturas ligeiras.
Estimular ‘bons hábitos’ de leitura
A recente visita da maior livraria flutuante do mundo teve como pano de fundo, segundo a porta-voz da embarcação, impulsionar a cultura de leitura no seio da população angolana, bem como a de partilha de conhecimento e experiências entre tripulantes e o público visitante.
Através da leitura, Navya Lankadasku diz acreditar que é possível transformar a vida das pessoas, mudando suas formas de pensar, falar, agir até de ver as coisas a seu redor.
“O nosso objectivo é promover a literatura, a partilha de conhecimento, generosidade e conectar as pessoas com o resto do mundo”, disse. Destacou, sobretudo, o papel dos livros no processo de ensino e aprendizagem da criança, acrescentando que a cultura de leitura abre a mente da criança e estimula o seu processo cognitivo fazendo com que esta absorva o conhecimento com maior facilidade do que outras que não lêem.
No acervo bibliotecário do navio, era possível encontrar livros de várias áreas de especialidade, desde obras de literatura, livros de ciências da saúde, psicologia, manuais de apoio e exercícios de ciências exactas, livros religiosos, manuais de desenhos para crianças, entre outros.
Acções sociais
Além de proporcionar um universo de livros, a Logo Hope, de acordo com a sua directora de media, procurou também realizar diversas acções sociais que possam impactar directamente a vida dos angolanos.
Navya contou à equipa de reportagem deste jornal que, desde a sua chegada a Luanda, vários voluntários do navio, repartidos em grupos de dez ou de vinte pessoas, realizaram diversas acções sociais em diferentes partes da cidade capital. Adiantou que, só no segundo dia, realizaram uma campanha de limpeza e recolha de resíduos ao longo da praia Ilha de Luanda, sendo que no dia seguinte renovaram as pinturas de algumas escolas públicas da baixa de Luanda e arredores.
Noutros dias, tal como constava do programa da embarcação, realizaram uma campanha de consultas gratuitas de oftalmologia na zona de Viana, concretamente no distrito da Estalagem, na via principal da Robaldina.
A campanha, explicou a mesma, além de consultar as pessoas com dificuldades de visão, procurou também ofertar óculos àqueles que apresentavam um estado preocupante de deficiência visual, mas que não tinham a possibilidade de adquirir óculos.
Nadya contou que, durante a campanha, foram ofertados mais de 50 pares de óculos, sendo as crianças e idosos os que maior beneficiaram. No penúltimo dia de estadia, a equipa da Logos Hope realizou uma acção de doação de roupas e calçados a algumas comunidades carenciadas em alguns bairros de Luanda. “Para nós, foi uma experiência emocionante. Com certeza, não nos vamos esquecer disso nunca. Obrigado Angola por estes momentos maravilhosos”, expressou.
Livros essencialmente religiosos
Na qualidade de embarcação essencialmente cristã, a tripulação da Logos Hope afirma que a sua missão se resume, fundamentalmente, na transmissão de mensagens de paz, de fé e de esperança aos povos, onde quer que vão, através dos livros.
O que constatou este jornal, para a “infelicidade” do público angolano, é que o acervo da biblioteca conta com um número muito escasso de livros em português.
Dos mais de cinco mil títulos disponíveis, menos de 500 livros são em língua portuguesa, situação que, segundo a nossa guia, se deve ao facto de a maioria das instituições doadoras dos livros ao navio serem livrarias, escolas, ONG’s e editoras de comunidades de países europeus anglófonos.
Entretanto, Lankadasku assegurou que, na próxima ocasião, a organização tudo fará para ter um número maior de obras em português, para poder atender à demanda do público angolano que, confessou, superou as expectativas da equipa organizadora em termos de adesão aos livros e, consequentemente, visitas ao navio.
“Infelizmente, temos muito poucos livros em português, a maioria dos nossos livros são em inglês e sinceramente não esperávamos ter tanto público assim a vir visitar-nos, visto que é a nossa primeira vez [em Angola] ”, disse a jovem.
Na livraria, os preços dos livros em exposição variavam entre três e 35 mil kwanzas, a depender do género da obra e da sua área de especialidade. Em casos mais específicos, o preço de um livro podia atingir os 60 mil kwanzas, de acordo com o que apurou este jornal durante a visita.
Visita do navio considerada oportuna para internacionalização das obras de escritores angolanos
Durante a estadia do navio em território nacional, vários escritores e associações literárias visitaram a embarcação e aproveitaram deixar à direcção da livraria do navio dezenas de títulos de autores angolanos, como forma de ajudar a difundir a expansão da literatura nacional no mercado internacional.
Entre os autores que ofertaram suas obras ao navio, consta o escritor Nituecheni Africano que, segundo fez saber, ofertou 20 exemplares de duas obras suas (dez de cada), nomeadamente “O Recluso- O princípio e o fim de uma injustiça”- livro vencedor do “Prêmio FOX USA”, edição 2024, e “O Imigrante da Web e Suas Tolices”.
Em declarações a este jornal, Nituecheni disse que a visita do navio trouxe um importante contributo para a valorização da literatura contemporânea africana e mundial, trazendo consigo obras que são uma referência a nível mundial e colocando variedade de livros à disposição do público angolano.
Notando a escassez de livros em português e, o mais “grave”, no seu entender, a ausência de obras de autores angolanos, considerou ser uma grande oportunidade para se poder expandir a literatura angolana, fazendo com que o navio leve consigo o maior número de títulos angolanos possíveis e possa expandir noutras geografias onde for passando.
“Para quem visitou o navio, notou que há escassez de livros em português e, uma vez que o navio esteve em Angola, é com certeza uma boa oportunidade para nós, escritores angolanos, colocarmos à disposição as nossas obras, para que elas sejam lidas por outros povos e conheçam a literatura angolana através dos seus autores”, frisou o escritor. Tal como Nituecheni Africano, quem também deixou exemplares de títulos da literatura nacional foi o escritor e historiador Venceslau Cassesse.
O movimento literário Lev’Arte, do município do Cazenga, e uma delegação da Brigada Jovem da Literatura (BJL) também doaram alguns exemplares da literatura angolana à livraria do navio.
Carlos Pedro, presidente cessante da BJL, destacou igualmente a visita do navio e apelou às instituições culturais de direito a firmarem uma parceira ou um memorando para permitir que obras de escritores angolanos passam a fazer parte do acervo bibliotecário daquela gigantesca embarcação internacional.
Ministro da Cultura doa clássicos da literatura nacional
A par dos escritores, o ministro da Cultura, Filipe Zau, durante a sua visita ao navio, na cerimónia de abertura da feira de livros daquela livraria flutuante, também deixou alguns exemplares dos “clássicos da literatura angolana”, tendo, na ocasião, destacado a importância da leitura para a melhoria do processo de aprendizagem dos jovens e crianças.
Na ocasião, o governante frisou que os livros são a ferramenta fundamental e indispensáveis no processo de educação e civilização das sociedades, referindo que “só por meio da leitura se podem recuperar os valores cívicos e morais” e fazer com que “as sociedades se desenvolvam, na base das boas práticas, atitudes e valores”.
Considerou a chegada do navio a Angola oportuna e extremamente importante para o país, sobretudo porque veio trazer uma experiência única que pode gerar troca de ideias, conhecimentos e visões sobre o mundo entre os angolanos e os tripulantes de mais de 60 nacionalidades.