Assinalou-se ontem, 13 de Março, o Dia Mundial do Rim. Por cá, os doentes renais continuam a depender apenas da hemodiálise, porque ainda não é possível fazer-se o transplante deste órgão. A vida continua a mostrar a parte dura a estes doentes que, enquanto não lutam por um lugar na lista da Junta, lutam para conseguir alimentação, dinheiro de táxi e medicamento, ou mesmo para não morrerem
Se calculado à razão de duas injecções por cada sessão de hemodiálise, e três vezes por semana, 5.760 é o número aproximado de injecções que Josemar Jorge apanhou, no braço direito, que não passa despercebido por conta das inflamações resultantes das ligações dos cateteres. Nestas inflamações, ele já não sente nada.
O medo de agulhas perdeu há bastante tempo, aliás, para quem viu mais de 10 amigos morrerem com a mesma doença, o medo de agulhas nem deve fazer parte da sua lista. “Nós, os doentes dialíticos, vivemos tipo The Walking Dead”, disse.
Fizemos esta conta porque Josemar Jorge, contabilista, economista e professor, agora com 34 anos, começou a fazer hemodiálise aos 18 anos de idade, em Dezembro de 2008, apesar de já ter frequentado as consultas com o nefrologista desde os seus 15 anos, no início do ensino médio, no IMEL.
As cambrais constantes, a dificuldade de dormir, a perda de peso, as pálpebras inflamadas, e o facto de ter histórico na família de insuficiência renal, serviram de sinais de alerta. O dia 22 de Dezembro de 2008, para ele, ficou o seu segundo dia de aniversário, por ser a data em que começou a diálise.
“Descobri o que é ter saúde. Como já estava há quatro anos doente, o meu corpo já estava, de tal forma debilitado, que já nem lembrava o que é ter saúde, o que é estar bem. Todos os dias eu acordava à noite para mijar, e só mijava um bocadinho. Todos os dias, de manhã, vomitava. Era tipo um ritual: acorda, fica na cama à espera do vómito.
Foi assim durante o último ano do ensino médio”, conta. Com insuficiência renal crónica, Josemar compara os doentes renais literalmente com o que acontece na série The Walking Dead, porque vivem sem um órgão (o rim). Daí que defende que a melhor forma de ajudar os doentes renais e os parentes é conceder dignidade a essas pessoas.
Um azarado sortudo
“Os doentes renais deviam ter ajuda da Segurança Social. Não é ir ficar na fila, durante o sol, para receber meio quilo de arroz, não. Deviam ter apoio social obrigatório. Depois, a maior parte dos doentes renais tem mais alguma outra doença. Eu, e mais alguns, somos os casos raros que não temos outra doença. Ou têm hipertensão, diabetes, HIV ou hepatite. Estes precisam de apoios”, sustenta.
O interlocutor disse ainda que não entende como no programa Kwenda estes doentes não são contemplados, se também passam por muitas dificuldades. Há doentes que não fazem diálise porque não têm o que comer, ou fazem alimentando-se de pão e chá, e outros que não aparecem no hospital por falta de dinheiro de táxi.
O doente renal, se estiver com a hipertensão descontrolada, carrega problemas de audição, visão, e até afecta o olfato. As diabetes podem provocar amputação dos órgãos, podem provocar cegueira. Então, a maior parte das pessoas que têm doenças acumuladas têm dificuldades de trabalhar.
Josemar se considera o azarado mais sortudo do mundo, porque diz que, apesar dessas dificul- dades, conseguiu “vencer o sistema”. “Percebi cedo que, como doente renal, não dava para confiar no emprego e eu não queria deixar o meu futuro na mão de alguém.
Então, decidi criar a minha empresa e escolher uma profissão que me seja fácil. Sou contabilista, sento numa cadeira, faço o meu trabalho. Mas algumas vezes você assusta só: “track”, deslocou algum membro ou apanhou mal jeito”, disse sorrindo.
A gravidez que trouxe à tona a insuficiência renal
Ainsuficiência renal mudou o rumo da vida. Se há 13 anos Teresa António tinha a Quinta-feira como mais um dia laboral como recepcionista na empresa SGO, onde trabalhava até antes de ser diagnosticada, agora este dia é apenas um dos três dias da semana em que a cidadã é “castigada” a ficar durante quatro horas sentada numa maca do hospital a ver as máquinas de hemodiálise fazerem a filtração do sangue no seu corpo, função que estava destinada ao rim que já não possui.
Já com dois filhos no mundo, Teresa engravidou pela terceira vez, em 2012, mas o que devia ser motivo de alegria (e até foi no princípio) para si, para o esposo e para a família, tornou-se na pior surpresa já alguma vez tida.
“Quando fiquei grávida, comecei a ter algumas complicações de saúde, tive o bebé (que depois de algumas semanas faleceu) e depois de um mês intenei no Américo Boa Vida, e foi no hospital que me deram a notícia de que estava com insuficiência renal”.
Aos 42 anos, a cidadã oriunda da província do Uíge sustenta-se a si e aos dois filhos com o negócio de rissóis e bolinhos, tudo porque, tendo sido diagnosticada, perdeu o lugar de recepcionista na empresa de viagem SGO e foi obrigada a depender da família que procura, sempre que possível, auxiliá-la. O auxílio, por sua vez, vem apenas quando realmente é possível, e quando assim não ocorre, apenas o pão e o leite entregues no Centro de Hemodiálise, durante as sessões, servem de alimento do dia.
Segundo conta, separou-se do primeiro marido antes de adquirir a doença e, depois de ser diagnosti- cada, o ex-companheiro nada fez para apoiá-la. Entretanto, no Centro de Hemodiálise Pluribus, conheceu um novo amor que, por coincidência, era um doente renal, e este a fez sorrir novamente.
No entanto, o sorriso não durou por muito tempo, pois, em 2018, João (nome fictício), seu esposo, perdeu a vida, vítima da doença renal. Tendo falecido o marido, Teresa deu início a um novo período difícil na sua vida, uma vez que, depois de se terem conhecido e terem feito os deveres como obrigação a tradição, João tornou-se o provedor na vida de Teresa e passou a apoiá-la em tudo.
Com a morte de João, a mulher foi obrigada a reinventar-se e a encarar a fúria dos familiares do companheiro, que lhe receberam a casa na qual viveram juntos durante mais de quatro anos. Enquanto falava com a nossa equipa, as lágrimas relutavam a cair dos olhos de Teresa que brilhavam como o candeeiro que não se quer apagar. Mas a mulher não permitia que as lágrimas lhe vencessem, porque a fé que encontrou na igreja “Bom Deus” fá-la acreditar que dias melhores virão.
Sonho interrompido e dificuldades de aceitar a condição
O ano de 2015 marcou a vida de uma jovem que, aos 28 anos de idade, possuía muitos sonhos e ambições que incluíam a vontade de melhorar as suas condições e as condições de vida da sua família. Marlene, como a vamos tratar por não aceitar ser identificada, admite que recebeu da pior forma a notícia de que um dos órgãos do seu corpo já não funcionava como devia. “Levei anos para aceitar isso, não achava que era possível, porque era muito jovem e ainda tinha muito pela frente.
A única ideia que me vinha em mente naquele momento era que todos os meus planos e projectos tinham caído por água-abaixo e que já não seria possível viver o que um dia sonhei e almejei”, conta a jovem. Em 2015, Marlene ficou internada por conta de uma malária, e o que ela achava ser mais um embate da “doença dos pobres” na sua vida gerou algo maior do que se imaginava e alterou o ciclo diário que tinha.
Para a sua família, a notícia chocou a todos, pois, para além de não haver ninguém com essa doença, ninguém na família tinha informações sobre a doença, porém, ao ser a primeira na família a viver tal episódio, os parentes tiveram de apoiá-la e aceitar o facto, ainda que difícil. Os filhos de treze e dez anos são as pessoas a quem ela mais dedica o seu tempo e amor.
“Nunca me sentei com eles para falar sobre a doença que tenho, mas a mais velha tem noção de que tenho algu- ma doença grave, aliás, a única coisa que eles sabem é que a mãe está sempre a ir ao hospital”, diz.
Solteira, Marlene vende roupas em casa e leva o mesmo negócio ao Centro de Hemodiálise, onde tem as enfermeiras e outras pacientes como fiéis clientes. A doença frustrou-lhe o sonho de ser bancária, e teve de parar no terceiro ano da faculdade, fruto da exigência que os estudos cobravam e não podia ser conciliada com o tratamento que lhe retira três dias da semana.
Durante a entrevista, esperava- se que Marlene chorasse ou ao menos lacrimejasse, mas, por incrível que isso pareça, a jovem nos contava a sua história com risadas leves, tudo porque hoje, diferente dos primeiros dias, põe em mente que a vida segue e encara a sua situação como um aprendizado, até porque, como atira, “a esperança é a última a morrer!”
POR: Romão Brandão e Germano Notícia