Tudo começou com a morte de João Pedro de Campos Valdez da Fonseca, ocorrida no dia 5 de Setembro de 2022 no Hospital Geral de Benguela, conforme atesta o Assento de Óbito n.º 50.332, passado pela Conservatória do Registo Civil da Comarca de Benguela.
Os filhos iniciaram uma batalha para a partilha dos bens deixados pelo seu falecido pai. São ao todo oito filhos, dos quais três já falecidos, e os cinco em vida disputam a herança milionária deixada pelo pai. Uma situação que se agrava pelo facto de o malogrado não ter lavrado um testamento.
Entre os bens adquiridos por João da Fonseca nas províncias da Huíla e Namibe, particularmente nos municípios do Lubango e Bibala, destacam-se viaturas, casas, terrenos, entre outros.
A falta de entendimento entre os irmãos faz com que todos os bens deixados pelo seu progenitor sejam vendidos para que cada um possa gerir a parte a que tem direito, de acordo com o seu entendimento.
O processo de venda de parte dos bens, concretamente um apartamento localizado no centro da cidade do Lubango, já foi iniciado por uma das herdeiras, no caso a filha mais velha de João da Fonseca, apesar de ainda não se ter sido lavrada uma habilitação de herdeiros conforme as normas legais.
Idme Valdez da Fonseca, uma das filhas e herdeira do falecido, diz estar a ser injustiçada na partilha dos bens por parte da sua irmã mais velha, Otília da Fonseca Lima, a quem acusa de ter elaborado a habilitação de herdeiros sem o consentimento dos demais, onde aparece como cabeça de casal.
Fundamentou a sua posição, alegando que se apercebeu há pouco tempo que a sua irmã mais velha vendeu a loja do seu pai, mas não domina o valor do negócio, nem o nome do comprador.
“Recebi uma ligação para que fosse ao Notário para ser informada sobre a venda do imóvel. Lá, no Notário da Huíla, o senhor Luís Monteiro Tavares disse-me que fez um contrato promessa em que os demais [os outros seus irmãos] estavam de acordo com a venda”, contou.
Idme da Fonseca afirma que era a única pessoa que não tinha assinado o referido contrato, pelo que o funcionário do notário procurou saber qual era a sua posição em relação a isso. “A princípio, eu não quis vender.
Ele disse-me que caso eu não concordasse com a venda, teria de ser eu a comprar o imóvel e dar a parte que cabe a cada um dos meus irmãos”, disse. Tendo em conta que o processo de elaboração da habilitação de herdeiros, no entender da nossa interlocutora, não terá obedecido aos requisitos legais, a mesma levanta suspeitas de que terá ocorrido tráfico de influência nos serviços de notariado na província da Huíla.
“Com o decorrer do tempo, apercebi-me que mesmo sem a minha participação, eles fizeram a venda. Segundo o senhor do notário, já estava a decorrer um imposto sucessório na Administração Geral Tributária (AGT), não sei como”, frisou.
Acrescentou de seguida que “o que sei até agora é que, para o efeito, é obrigatório, por lei, que se faça antes uma habilitação de herdeiros. Pelo que eu saiba, esta habilitação é feita com a presença de todos os herdeiros. A minha questão é: como é que foi feita esta habilitação, se os demais herdeiros não estiveram presentes e nem foram consultados?”.
Suspeitas de falsificação de documentos Idme
Valdez da Fonseca, representante legal dos seus dois irmãos, nomeadamente Sandro e Janete Valdez da Fonseca, levanta também a hipótese de ter ocorrido um crime de falsificação de documentos, no âmbito da execução do processo de venda do referido imóvel.
“Eu não participei em nada. Por este motivo, fiz um documento dirigido à Delegação da Justiça, pedindo esclarecimento sobre o processo, a fim de perceber como foi feita a partilha da herança, uma vez que os demais herdeiros não participaram da mesma”, frisou.
No seu entender, não é admissível que uma venda que resulta em um contrato promessa decorra sem que haja qualquer escritura ou documento que faça fé ao processo e muito menos que não se tenha qualquer cópia, sobretudo de uma habilitação de herdeiros.
Conta que, do contacto que fez com a Delegação da Justiça na Huíla, foi informada de que os técnicos deste órgão do Estado não encontraram no notário nenhum documento relacionado com essa operação.
“Isso é o que me preocupa, porque como é que um notário nem sequer tem o registo de uma venda que se fez aqui no Lubango. Eu tenho a plena certeza que as coisas deixadas pelo meu pai estavam todas registadas em cartório”.
Idme da Fonseca alegou ainda que parte da herança, como carros e outros móveis, já foi vendida pela sua irmã mais velha, no entanto, a partilha nunca foi feita de forma justa, o que deixa ainda mais indignados os irmãos.
Entre estas suspeitas de falsificação de documentos está igualmente a coação dos irmãos menores para assinarem documentos que atestam a renúncia de sua parte na herança, como é o caso do jovem Otávio da Fonseca, segundo a fonte.
Por outro lado, a jovem revela igualmente que tem sofrido ameaças de detenção por parte de um suposto irmão, comandante da URP no Lubango. “Eu cheguei a renunciar a herança, porque num certo dia eu estava cá em casa e liguei para a mana Santa [Otília Carina Pires da Fonseca de Almeida] a cobrar os valores que me cabiam da segunda parte da venda da loja, ela disse que os valores não estavam disponíveis”, frisou.
Otávio da Fonseca afirma, em entrevista ao jornal OPAÍS, que assinou um documento, no notário do Lubango, em troca de um milhão e 100 mil kwanzas para pagar por uma vaga de emprego na Polícia de Intervenção Rápida (PIR), sem saber que se tratava de uma declaração de renúncia da herança.
Aparecimento de um novo irmão aumenta tensão entre os herdeiros
A situação desconfortável em que se encontram os herdeiros do malogrado João da Fonseca se agudizou ainda mais com o aparecimento de um indivíduo que se apresenta como sendo seu filho, não reconhecido.
Trata-se do cidadão Guilherme Tchipa, que não foi reconhecido por João da Fonseca como filho. Alegadamente por essa razão, este jovem polícia só agora apareceu entre os herdeiros depois que se despoletou a disputa pela herança.
Os irmãos, descontentes, pedem que Guilherme Tchipa seja retirado do processo de herança, já que este não foi registado pelo progenitor. Apesar de o mesmo ter apresentado um teste de DNA que comprova a sua filiação.
A intensão foi manifestada por Sandro Valdez da Fonseca, que afirma ter domínio dos bens deixados pelo seu pai e, por isso, pede que o seu suposto irmão seja retirado da habilitação de herdeiros.
“A nossa irmã mais velha está a vender as coisas da maneira dela. Sem os procedimentos legais, sem respeitar a opinião de cada um”, frisou. Acrescentou de seguida que “já que isso é uma partilha e não chega para vender as coisas a seu bel-prazer e dizer a cada um que vá a sua conta e está lá um valor. Isso não funciona assim”.
O jovem manifestou que gostaria que houvesse mais respeito para com os bens que o seu pai deixou, tendo confirmado que cedeu também uma porção de sangue para que o seu “novo irmão” pudesse fazer o teste de DNA.
Um procedimento que carece do cumprimento de algumas normas judiciais. “O DNA justifica que ele é nosso irmão. O que eu quero é que se mantenha o respeito e se justifica como é que os herdeiros vão partilhar os bens que o nosso pai deixou”, enfatizou. Entretanto, Idme da Fonseca Valdez disse nunca ter consentido a feitura do teste de DNA apresentado por Guilherme Tchipa, e que o seu pai nunca tinha falado da existência deste. “Eu digo suposto irmão porque eu nunca ouvi o meu pai a falar sobre o senhor. Ele intitula-se ser meu irmão, mas ele não tem o nosso sobrenome”, frisou.
Ela afirma que, apesar disso, Guilherme Tchipa aparece como um dos assinantes do contratopromessa da venda do imóvel orçado em 60 milhões de kwanzas, dos quais 50 por cento já foram pagos pelo comprador.
“Quero é pedir ao senhor Guilherme Tchipa que não intervenha neste processo ou num assunto que não está relacionado à pessoa dele. Peço que saia do processo o mais rápido possível e deixe os herdeiros do senhor Valdez da Fonseca tomar conta deste processo”, apelou.
Contactado pela nossa reportagem, Otília da Fonseca disse que só responderia se fosse para um órgão de justiça. Já Guilherme Tchipa, que se encontrava em Luanda por motivos profissionais, sem gravar entrevista, disse que em momento algum participou das vendas dos bens que hoje disputam como herança. Contou que, apesar de ter assinado o contrato-promessa da venda da loja, limitou-se simplesmente a apresentar o teste de DNA.
Notário diz que agiu com base nos princípios legais
Em função das acusações feitas pelos irmãos descontentes sobre a falsificação de documentos na realização da habilitação de herdeiros, a nossa equipa contactou o Cartório Notarial da Huíla, na pessoa do responsável Luís Monteiro Tavares, para compreender os meandros do processo.
Segundo o seu responsável, o processo foi concebido com base nos trâmites legais e corre, naquele notário, um processo de habilitação de herdeiros sem prejuízo de nenhum dos herdeiros.
Luís Monteiro Tavares explicou que este processo corre nos trâmites do cartório de que é responsável e ninguém está a ser prejudicado. Trata-se de um processo que correu dentro daquilo que são os pressupostos para a elaboração da escritura pública para a elaboração da habilitação de herdeiros.
Sublinhou que processos desta natureza passam pelo crivo do Ministério Público e, como este já passou, foi pago um imposto sucessório. “É um processo normal. Todos fazem parte da sucessão, atendendo à idoneidade das testemunhas que declararam a existência dos filhos.
Por isso, não vejo qualquer intervenção do notário em prejudicar A ou B”. Por outro lado, Luís Monteiro Tavares esclareceu que o processo de elaboração da habilitação de herdeiros é facultativo e que ocorre num Tribunal que, na sequência, ordena a elaboração do inventário orfanológico obrigatório.
“Na habilitação notarial por tradição não diz que os herdeiros devem ir ao Notário assinar a habilitação de herdeiros. Isso não é o modelo, não é o passo que o Notário deve seguir, ainda que não tiverem conhecimentos”, frisou.
De forma pedagógica, explicou que são declarados herdeiros de alguém que faleceu e isso consta do processo. “Quem deve dizer que são dois ou 10 herdeiros não é o notário, são três testemunhas que o Notário acha idónea e que vêm ao cartório declarar que conheceram o falecido e os filhos que deixou. Não é responsabilidade do Notário”, disse.
Entretanto, Idme da Fonseca Valdez diz que o imóvel deixado pelo seu pai já foi vendido e que foi elaborado um contrato-promessa, em que o comprador já terá pago 50 por cento do valor da venda estimado em 60 milhões de kwanzas, num negócio do qual não fez parte das negociações, muito menos da elaboração da habilitação de herdeiros.
Jurista diz que habilitação de herdeiros deve ser elaborada antes da partilha dos bens
Solicitado a fazer uma análise sobre os procedimentos para elaboração da habilitação de herdeiros, o jurista Quito Fernandes afirmou que a mesma deve ser feita antes da partilha dos bens, o que deverá ser feita mediante um requerimento a solicitar a habilitação de herdeiros.
Quito Fernandes disse que a habilitação de herdeiros requer necessariamente a intervenção de um magistrado judicial, com vista a chamá-lo para suceder o património deixado pela pessoa que perdeu a vida.
O nosso interlocutor disse que, se um dos herdeiros sentir-se prejudicado, a lei prevê que este possa requerer um incidente de habilitação que visa impugnar tal acto.
Pode ainda requerer ao Ministério Público que se responsabilize criminalmente as testemunhas que prestaram juramento por terem violado o princípio da igualdade sucessória entre filhos.
“Se haver de certa forma uma habilitação e um dos herdeiros sentir-se prejudicado por ter sido afastado, a lei lhe dá a possibilidade de impugnar mediante incidente de habilitação, que pode ser requerido junto do Tribunal. Não se pode fazer discriminação, não se pode afastar qualquer filho, independentemente de qualquer razão”, afirmou.
Sobre o aparecimento de um outro filho, Quito Fernandes explicou que, no processo de inventário, ocorrendo que alguém se julgue ser filho e que não tenha sido reconhecido o estado de filiação, o reconhecimento só poderá ocorrer mediante a um recurso ao Tribunal.
“No processo de inventário, ocorrendo que alguém se julgue ser filho e esta pessoa em vida do autor da sucessão não lhe tenha sido reconhecido este estado de filiação, a primeira coisa que deve fazer é solicitar ao Tribunal que se lhe seja reconhecido por meio de estabelecimento de filiação para que este venha a reconhecer a sua filiação”, frisou, salientando que, só depois de transitado em julgado, esta decisão pode efectivamente integrar na massa sucessória dos demais herdeiros”.
Por: João Katombela, na Huíla