A ausência de uma plataforma única que congregue os dados relativos à situação das crianças em Angola é entendida como um dos grandes impasses para as organizações que trabalham na defesa deste grupo vulnerável. O principal serviço de denúncia de casos de violência contra menores ainda não cobre o país todo. O Executivo, por via do INAC, reconhece a dispersão dos dados e está na corrida para a criação de uma base única que reúna os números reais sobre a assistência e violência contra as crianças no país
A falta de uma base de dados única sobre a assistência e violência contra a criança tem vindo a criar constrangimentos no seio de muitas organizações e instituições que trabalham na defesa dos direitos deste grupo da sociedade.
Entretanto, a falta de uma plataforma única responde pelo grau de dispersão dos números relativos à situação real das crianças em Angola, o que não confere total segurança para as organizações, instituições e pessoas singulares que trabalham na pesquisa, tratamento e divulgação de dados ligados aos menores pelo país todo. Em Angola, para além do Instituto Nacional da Criança (INAC), várias instituições trabalham na recolha de dados sobre os menores.
Dentre as organizações perfilam o UNICEF, Conselho Superior da Magistratura Judicial e uma infinita rede de Organizações Não Governamentais (ONG’s).
Porém, apesar de todas fazerem o mesmo trabalho, na hora de apresentação dos relatórios os números apresentam perspectivas diferentes um do outro, o que espelha um desalinhamento das políticas, como constatou a reportagem do jornal OPAÍS.
A título de exemplo, recentemente, os diferentes relatórios do INAC, UNICEF e Conselho Superior da Magistratura Judicial mostraram estar desalinhados no que a situação da criança em Angola diz respeito, uma posição que dificulta o tratamento da informação.
Dados do UNICEF aponta que, em Angola, uma em cada quatro crianças entre 5 e 17 anos é vítima de trabalho infantil. Segundo o documento, é necessário proteger as crianças de todas as ameaças que podem afectar a sua saúde física e mental.
A exposição à violência prejudica a capacidade de aprender e de socializar das crianças, afectando a sua transição para a idade adulta.
O relatório refere, igualmente, que apenas 25% das crianças entre os 0 e 4 anos de idade foram registadas à nascença.
A falta de prova de identidade legal e de idade dificulta o acesso a serviços essenciais, como educação, e dificulta o trabalho dos órgãos de protecção contra as violações dos direitos das crianças.
Os números desencontrados
Já o Instituto Nacional da Criança (INAC) registou 26 mil 386 casos de violência contra as crianças, em todo o país, no período de Janeiro a Outubro de 2024, conforme revelou, recentemente, o seu director-geral, Paulo Kalessy.
Paulo Kalessy prestou a informação no acto de apresentação do plano de acção da campanha “Somos Todos Iguais”, presidida pela Primeira-Dama da República, Ana Dias Lourenço.
Deu a conhecer que o número de casos tem reduzido, ano após ano, mas manifestou preocupação pela forma como os actos de violência são realizados.
Salientou que os casos de fuga à paternidade, com 11 mil 748, são os que mais ocorreram, seguido de cinco mil 363 de trabalho infantil e três mil 215 ligados à violência física e psicológica.
O director-geral do INAC apontou ainda os mil 315 casos de violência sexual, além de outros ligados à negligência (823), disputa de guarda (746), abandono de criança (566), acusação de práticas de feitiçaria (98) e homicídio (48).
Por seu turno, os tribunais de jurisdição comum de Luanda deram seguimento, em 2024, a um total de 141 processos de violência sexual contra menores, dos quais 26 já julgados, divulgou, recentemente, o Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ).
Os dados foram apresentados numa sessão extraordinária do CSMJ, que em plenário deliberou que as equipas da inspeção judicial deste órgão vão passar a acompanhar os processos de abuso sexual contra menores que tramitam nos tribunais de jurisdição comum.
De acordo com o CSMJ, o mapa estatístico de processos por violência sexual contra menores de 2024 lista crimes de abuso sexual de menor, agressão sexual, abuso sexual de pessoa inconsciente e lenocínio.
Ao nível dos juízes de garantias, o mapa mostra a tramitação de 216 processos, de janeiro ao presente mês, numa média mensal de 30 processos, sendo que os casos de abuso sexual de menores lideram a lista com um total de 167 crimes, seguido das agressões sexuais, com 27 casos.
País precisa ajustar a sua base de dados
Por sua vez, José Caxinda, da organização Cuidados da Infância, entende que o país tem necessidade de ajustar e conformar a sua base de dados para não se continuar a ter os dados sobre a assistência às crianças dispersos.
Segundo o activista social, cada organização que intervém na defesa dos direitos das crianças possui dados diferenciados e isolados que depois criam dificuldades aos outros organismos e instituições que precisam trabalhar com os números certos.
Para José Caxinda, assim como acontece noutros países, é preciso que Angola tenha uma central única em que os dados relativos às crianças são recolhidos e tratados para posterior consulta pública.
“O que acontece é que cada organização tem a sua base de dados. E, na hora da divulgação, fica tudo numa dispersão e confusão porque os números depois não são conformados”, alertou.
De acordo ainda com José Caxinda, essa falta de uniformização dos dados pode induzir a erros no momento em que se definem as políticas públicas viradas à assistência e apoio às crianças.
“Se o país não tem uma base de dados unificada, fica difícil determinar e definir as políticas públicas para crianças e situação de vulnerabilidade”, apontou.
Linha de denúncia ainda não cobre o país todo
O principal serviço de denúncia de casos de violência contra menores, SOS-Criança, ainda não cobre o país todo, o que, para muitos especialistas, dificulta a resposta e celeridade dos dados relacionados a agressões contra os mais pequenos.
Entretanto, o 15015 tem cobertura direta apenas em quatro províncias, nomeadamente, Luanda, Huambo, Benguela e Huíla.
Segundo a porta-voz do Instinto Nacional da Criança (INAC), Rosalina Domingos, embora as outras províncias não tenham o serviço, os lesados ou que queiram fazer alguma denúncia podem ligar para o número central do SOS Criança.
E, frisou, automaticamente, aciona-se um ponto focal em detrimento da situação que for relatada. A título de exemplo, explicou que, quando uma criança for encontrada na rua com sinais de espancamentos, o primeiro passo a se dar, através dos pontos focais, é a assistência médica e, posteriormente, a sequência de outros procedimentos.
“E, em todas as províncias, nós temos os pontos focais ligados em três aspectos: a polícia, para dar respostas a situações de violência; a saúde, caso sejam situações de espancamentos ou alguma patologia; e ação social para as questões de assistencialismo”, descreveu.
De acordo ainda com Rosalina Domingos, mediante a estruturação destes três pontos focais é que o INAC faz o acompanhamento dos casos até o desfecho da situação.
“Não temos ainda capacidade para atender a todas as províncias. Está a se trabalhar agora para que o 15015 funcione naquelas províncias que ainda não temos cobertura”, explicou.
Quanto à celeridade no atendimento dos casos, Rosalina Domingos disse que a eficiência tem muito a ver com os serviços a nível de cada província.
“Mas naquilo que é o nosso papel, incentivamos que as questões ligadas às crianças devem ser agora. Que não devem esperar e que requerem prioridade. Mas isso também tem muito a ver com a sensibilidade do pessoal a nível local”, esclareceu.
Polícia trabalha com várias linhas de denúncia
O porta-voz do Departamento de Investigação de Ilícitos Penais da Polícia Nacional (DIIP), Quintino Ferreira, disse que, por ser um crime público, a violência contra criança não pode esperar por linhas de denúncias específicas.
Conforme referiu, a DIIP, mediante o serviço de investigação e policiamento de proximidade, tem registado vários casos de violação dos direitos das crianças.
De acordo com Quintino Ferreira, mediante a natureza do caso, é que a polícia define a qual das instituições devem ser encaminhados os casos que chegam até a corporação.
“Recebemos os casos e posteriormente definimos para onde encaminhar, depois do nosso tratamento enquanto polícia. Normalmente, os casos são encaminhados para o INAC, Acção Social ou às administrações municipais”, apontou.
Executivo trabalha na criação de uma base única
Por seu lado, o director-geral do Instituto Nacional da Criança (INAC), Paulo Kalessy, anunciou que, face às dispersões dos dados relativos aos casos de violência e assistência à criança, o Executivo está a trabalhar numa única base de dados.
Esta plataforma única, explicou, vai congregar todas as organizações e instituições públicas e privadas que trabalham na assistência à criança. Sem avançar dados concretos, Paulo Kalessy disse que esta plataforma única vai conformar os dados de todo o país no que a assistência e situação da criança angolana diz respeito, desde as agressões físicas, sexuais, fuga à paternidade, falta de assistência e outros tipos de violência que ainda ameaçam o desenvolvimento harmonioso das crianças no território nacional.
“Estamos a trabalhar nesse projecto executivo e dentro em breve faremos chegar à sociedade e a todas as organizações que trabalham nos direitos das crianças em Angola”, avançou o responsável sem entrar em detalhes.