Sandra Neto é uma mulher, de 40 anos, que vive com HIV e um exemplo vivo de resistência e superação diante do estigma. Nascida e criada no município do Cazenga, em Luanda, Sandra enfrentou uma jornada difícil quando recebeu o diagnóstico de HIV, aos 18 anos, enquanto estava grávida de sua primeira filha, hoje com 22 anos.
“Quando recebi a notícia, fiquei em prantos, mas depois de algum tempo, decidi que não que- ria morrer. Eu queria viver”, contou Sandra.
Sandra, que abriu as portas de sua casa à equipa de reportagem do jornal OPAÍS, disse que o apoio de seu marido (que testou negativo) foi fundamental na fase inicial, embora o casal tivesse que esconder o diagnóstico.
Escondeu até 2015, altura em que Sandra passou por uma crise de saúde, precisou ser internada, no Hospital do Prenda, e teve que revelar a o problema da escassez de medicamento Sandra também levantou questões importantes sobre a realidade dos pacientes com HIV em Angola.
No seu depoimento, ela expressa sua frustração com a escassez de medicamentos e o encerramento do Hospital Esperança, destinado ao atendimento de pessoas que vivem com o HIV.
“Falta medicação. Nos hospitais e centros de saúde, estão a dar apenas 10 a 15 comprimidos por vez. Isso é um grande transtorno, principalmente para aqueles que ainda não quebraram o estigma e lhes pesa estar constantemente no hospital, facto que faz com que muitos abandonem o tratamento”, lamenta Sandra, que observa muitas pessoas a buscarem tratamento em locais distantes de suas casas, devido ao estigma que ainda paira sobre o HIV.
“Muitos têm medo de ir ao hospital e encontrar pessoas que conhecem. O estigma é tão grande que muitas acabam por abandonar o tratamento”, Explica.
“já perdi um emprego por conta disso e quase processei a empresa”
Um outro entrevistado, de 23 anos, que preferiu ocultar a sua identidade, vive com HIV desde a infância. Ele foi diagnostica- do aos 7 anos, mas só descobriu sua condição aos 15 e de forma abrupta durante uma palestra, na escola, sobre o HIV.
Durante os anos em que não sabia, diariamente a mãe e avó davam-lhe um comprimido dizendo que era vitamina para lhe fortificar. “A minha revelação não foi com psicólogo, nem no seio familiar. Foi na escola quando recebemos um grupo de activistas que falavam sobre o HIV, e calha que, naquela palestra, um activista tinha uma mão cheia de comprimidos e eu reconheci alguns comprimidos porque eu tomava”, conta.
Chocado e revoltado, viu-se na necessidade de mudar de escola. Depois conversou com a mãe e avó que explicaram a situação, sem saberem como ele apanhou a doença, pois ninguém da família tem, mas que foi descoberta no hospital, por conta do facto de ele, enquanto criança, ter ficado constantemente doente.
“Mas continuei a tomar a minha medicação, apesar da revolta. Não parei porque sabia que os comprimidos iriam me fortificar e, se eu deixasse, teria consequências muito graves”, sublinha. Mas momentos de estigma e preconceito não faltaram quando os amigos se aperceberam do seu estado serológico.
“Começaram a me dar tratamento diferenciado e deixaram de conviver comigo. Já perdi um emprego pelo mesmo motivo. Tanto é que quis processar a empresa”, disse. Nos descambados da vida, o jovem se tornou resiliente e, ao longo do tempo, foi buscando por mais informações sobre o HIV e encontrou forças quando decidiu ajudar os outros.
Hoje, ele promove campanhas educativas, incentiva testagens e desmistifica informações sobre HIV. “As pessoas não sabem que, com a medicação adequada, o vírus se torna indetectável e não é transmitido por via sexual”, ensina.
De acordo com o jovem activista, o HIV/SIDA tem de ser um assunto abordado em qualquer espaço, desde escola, igreja, casa e nas ruas, sem nenhum tabu. Este assunto precisa de mais atenção, não apenas na fase da efeméride, de acordo com o entrevistado.
Estudo revela que a discriminação e o estigma ainda são barreiras para o tratamento
Os dados mais recentes sobre a prevalência do Vírus de Imunodeficiência Humana (HIV) em Angola, na população em geral, provêm do estudo Inquérito de Indicadores Múltiplos de Saúde (IIMS), realizado pelo INE em 2015- 2016, que aponta uma prevalência de HIV de 2,0% na população em geral, com taxas mais altas entre mulheres e a maior prevalência registrada entre pessoas com pouca escolaridade, os divorciados ou separados.
Embora o país tenha dado passos na luta contra o HIV, a discriminação e o estigma ainda são barreiras significativas para o tratamento e a saúde pública. Um estudo recente, apoiado por organizações internacionais como a ONUSIDA e a GNP+, revela a magnitude do problema e os desafios diários enfrentados por pessoas que vivem com HIV no país.
O estudo, que é uma iniciativa conjunta de várias organizações internacionais, GNP+, ICW e ONUSIDA, com o apoio da Universidade John Hopkins, usou uma amostra de 1.233 de pessoas que vivem com HIV (VVVIH), distribuídos por seis regiões de Angola, representadas pelas províncias de Luanda, Benguela, Huíla, Huambo, Cuanza-Norte e Lunda-Sul.
Com o objectivo de compreender as experiências vividas pelas pessoas vivendo com VIH em Angola relativamente ao estigma, discriminação e barreiras no acesso aos serviços de VIH, a média de idades dos participantes do estudo foi de 35 anos e a mediana de 34 anos, sendo que a idade máxima foi de 63 anos.
E os resultados mostram que o VIH, e viver com o VIH, continua a ser um tema social contestado que afecta directamente a vida das PVVIH. O estudo, que teve um maior peso de amostra de pessoas que procuram os serviços de saúde e das que procuram os serviços de apoio comunitário, revelou que o estigma e a discriminação afectam directamente as PVVIH, dificultando não apenas a revelação do seu status serológico, mas também o acesso a cuidados de saúde e apoio social.
“Mais de 58% das pessoas afirmaram que é difícil contar aos outros sobre o seu estado de saúde, e 71% disseram que a revelação do seu estado a amigos e familiares não é uma boa experiência”, disse Inês Gaspar, coordenadora do estudo, que afirmou que estes dados reforçam o quanto o estigma social impede as pessoas de procurarem ajuda e tratamento.
Além disso, avança que quase 35% dos participantes enfrentaram formas de estigma e discriminação que frequentemente resultam no isolamento social. “Mais de 22% das pessoas relataram ter se afastado de ambientes sociais, com uma minoria que se sente abandonada por suas famílias.
Esse ambiente de exclusão social agrava a situação, tornando o processo de tratamento e cura ainda mais desafiador”, disse. O estudo revelou também que a adesão ao tratamento antirretroviral (TARV) é alta, com 84% das PVVIH seguindo a terapia, mas a interrupção do tratamento ainda é um grande desafio, com 42% dos participantes indicando que faltaram do- ses de ARVs nos últimos 12 meses.
“O estigma e a discriminação são realidades na vida das PVVIH. Não só alimentam a propagação da epidemia, como também têm um impacto negativo nas respostas eficazes ao VIH”. Além disso, muitos enfrentam complicações de saúde secundárias, como doenças infecciosas e problemas psicológicos.
Desafios no acesso ao tratamento e à informação
Sandra e outras activistas como ela estão empenhadas em quebrar as barreiras do estigma e da discriminação que ainda cercam o HIV em Angola. A luta continua, não apenas para garantir acesso a tratamento e medicamentos, mas também para mudar a forma como a sociedade enxerga as PVVIH.
O estigma e a falta de informações claras sobre o HIV ainda contribuem para que muitos angolanos não realizem testes voluntários. Isso é uma preocupação crescente, visto que a falta de diagnóstico impede muitas pessoas de obterem tratamento a tempo.
A conscientização e a educação são, para os dois entrevistados que contaram as suas histórias, passos fundamentais para reduzir a propagação do vírus e para que as pessoas com HIV possam viver com dignidade e sem medo de serem rejeitadas.
“As pessoas têm medo do HIV, mas têm medo também de outras doenças como insuficiência renal, diabete e hipertensão. Precisamos falar mais sobre isso e fazer uma conscientização mas- siva”, afirma Sandra.
A sua mensagem de Sandra é clara: “eu não pedi por esse vírus, mas farei dele um propósito”. Este é o lema da senhora que vive há mais de 20 anos com o vírus do HIV e considera que o estigma e a discriminação não devem ser barreiras, mas sim impulsos para a mudança.
Por outro lado, o custo elevado de exames complementares e a falta de serviços especializados em unidades públicas são obstáculos adicionais. Ressalta o nosso entrevistado que, muitas vezes, vê-se obrigado a recorrer a clínicas privadas, o que fica fora do alcance da maioria dos pacientes.
POR:Stélvia Faria