O não pagamento à Segurança Social por parte das empresas viola um direito fundamental dos trabalhadores, que está previsto na Constituição da República de Angola e na Lei. Nessa condição, estão muitos trabalhadores angolanos que chegam à idade da reforma para descobrirem uma realidade dura e difícil de aceitar: o dinheiro que durante anos a empresa supostamente descontava para pagamento à Segurança Social nunca existiu
Mesmo depois de muito se sensibilizar as empresas para o cumprimento do pagamento da Segurança Social dos trabalhadores, há ainda um elevado número de instituições, em Angola, que não depositam as contribuições dos seus empregados, embora estes, todos os meses, sofrem desconto salarial.
João Rodrigues, nome fictício, trabalhou durante 20 anos numa empresa e na altura em que decidiu pedir a sua reforma por limite de idade, para o seu espanto, o Instituto Nacional de Segurança Social (INSS) não o tinha entre os milhares de contribuintes.
Tudo porque os gestores da empresa onde trabalhava, afinal, descontavam no seu ordenado a verba que seria destinada à Segurança Social mas não depositavam no INSS, durante todo esse tempo.
Quando manifestou o interesse de retirar-se do emprego para cumprir, aos 60 anos de idade, foi surpreendido com a informação de que a sua contribuição era demasiado baixa, ou seja, não havia contribuído nos últimos 20 anos.
O registo que tinha era do seu anterior emprego. “Apesar de eu ser porta- dor de um cartão do INSS, tudo não passou de uma simulação e o problema só foi resolvido com a intervenção da justiça, que obrigou a minha antiga em- presa a pagar o que me deviam”, contou.
Rodrigues conta que o caso foi levado a tribunal e só depois de dois anos veio a conhecer a decisão que lhe foi favorável. Embora já não consegue precisar o valor da dívida, felizmente, o nosso interlocutor, já está a beneficiar da pensão de reforma que considera razoável.
A mesma dificuldade está a viver um jornalista de profissão, com passagem por diversos órgãos, em véspera de completar 30 amos de trabalho.
O profissional, que aceitou falar sob anonimato, conta que descobriu tardiamente que o dinheiro que era descontado não ía parar a segurança social. A partir daquela data passou a acompanhar tais pagamentos e, neste momento, conta com dois anos de contribuição para a sua reforma.
Para a sua tristeza, a maioria das empresas por onde trabalhou, que descontava e não pagavam, já estão encerra- das. “Passei por muitas empresas, era descontada a Segurança Social, mas quando fui consultar não tinha nenhum registo de depósito em meu nome”, lamenta.
Numa delas, os seus colegas que lá estavam ainda exigiram que se resolvesse o problema, despoletando um processo contra a empresa, mas não tiveram sucesso. Esta acabou por fechar e ninguém teve a sua condição resolvida.
O profissional, que actualmente se encontram num órgão de comunicação privado, debate- se com enormes dificuldades financeiras e teme pelos próximos anos, quando a sua condição física não lhe permitir mais trabalhar afincadamente.
Empresas privadas são as maiores prevaricadoras
Os descontos dos trabalhadores para a Segurança Social servem para garantir a vida quando estes não puderem mais dar o melhor de si para aquela empresa. Dentre outras questões, ela diz respeito a todas as pessoas economicamente activas.
É através da Segurança Social que os trabalhadores acedem a prestações substitutivas do seu rendimento de trabalho em caso de doença, na maternidade e paternidade, no desemprego, na doença profissional, na invalidez, na velhice, na morte e encargos familiares.
Dados do INSS indicam que muitas empresas não contribuem para a Segurança Social, colocando em risco a sustentabilidade do Sistema Nacional de Protecção Social.
Segundo Geraldo Culivela, director de Segurança Social do INSS, embora não esteja devidamente quantificado o número exacto de empresas, este tipo de infracção é muito recorrente e das mais gravosas. Inclusive, disse, a não entrega à Segurança Social dos valores descontados ao trabalhador constitui a maior violação da obrigação contributiva.
“Esta infracção acaba por prejudicar o trabalhador, na medida em que o mesmo, visto que a realização de contribuições constitui o pressuposto para o direito às prestações garantidas pela Protecção Social Obrigatória”, esclarece.
Segundo o gestor público, actualmente as empresas do sector privado são as que mais registam infracção de descontar o valor da contribuição do trabalhador e não depositar a favor da Segurança Social.
O dirtector de Segurança Social do INSS considera necessário incutir nos gestores a responsabilidade pelo cumprimento das suas obrigações junto da Protecção Social Obrigatória, de modo a garantir o bem-estar dos seus trabalhadores e dos seus familiares, face às eventualidades ou riscos sociais protegidos pelo sistema.
Tratando-se de uma infracção que lesa não só os direitos do trabalhador, mas também da Entidade Gestora da Protecção Social Obrigatória, segundo Geral- do Culivela.
Explicou que este é um imperativo, como forma de responsabilizar os incumpridores com medidas que passam pela notificação dos contribuintes para que regularizem a situação contributiva, a aplicação de sanções como juros de mora e multas, a interdição do contribuinte de participar em concursos públicos, bem como da submissão de processos para prestações sociais.
Mas, avança que o trabalhador, enquanto lesado, pode fazer uma denúncia ou participação dessa irregularidade à Inspecção da Segurança Social ou à Inspecção Geral do Trabalho (IGT), ou ainda noutras instituições vocacionadas na defesa dos interesses legalmente protegidos dos cidadãos, de modo a que se despoletem os mecanismos legal- mente previstos para a regularização da situação contributiva da empresa.
Por outro lado, para evitar surpresas desagradáveis como a de falta de pagamento das contribuições por parte da entidade empregadora, assiste ao trabalhador o direito de solicitar da empresa onde trabalha ou do INSS, informações sobre a sua situação vinculativa e contributiva.
“O trabalhador deve, previamente, fiscalizar se a sua instituição paga regularmente as contribuições para a Segurança Social. Actualmente, com a obrigatoriedade do uso da folha de remuneração electrónica, o controlo está mais facilita- do por meio dos aplicativos digitais”, frisou o responsável.
Trabalhador pode intentar acção judicial para salvaguardar o seu direito violado
As contribuições para a Segurança Social são arrecadadas para atenuar os efeitos da redução dos rendimentos dos trabalhadores nas situações de falta ou diminuição da capacidade de trabalho nas condições já referidas acima.
O Sistema de Segurança Social de Angola é composto por vários tipos de regimes de carácter contributivo, tais como Regime dos Trabalhadores por Conta Própria, Regime dos Trabalhadores por Conta de Outrem, e os demais previstos na lei, cujo cumprimento de deveres e direitos às prestações são definidas por Lei, segundo o jurista Tonilson Soares.
Este profissional de direito afirma que nas situações em que as entidades empregadoras “ludibriam os trabalhadores”, no caso, os por Conta de Outrem, fazendo-os crer que as respectivas contribuições estão a ser feitas em prol dos seus benefícios, quando em boa verdade elas não o fazem, podem ser processadas.
Explicou que a retenção das contribuições no INSS, por parte das empresas constitui crime de abuso de confiança, com base o n.º 2 do artigo 57º da Lei de Base da Protecção Social.
Outrossim, disse o jurista, não obstante o crime acima descrito, a falta de cumprimento das obrigações legais relativas à Protecção Social relacionada com a inscrição nos regimes de Protecção Social, da entrega das folhas de remuneração, bem como a fraude nas inscrições, constituem contravenções nos termos do mesmo artigo da lei supracitada, que são puníveis com multas a serem fixadas pelo diploma próprio.
“No caso dos trabalhadores nas condições acima descritas, podem intentar uma acção judicial diante dos órgãos competentes, a fim de ser restituído o direito violado. Como consequência, a entidade empregadora será obrigada a pagar todas as contribuições devidas ao trabalhador desde a data que esta deixou de prestar”, disse.
Por outro lado, frisou também que os trabalhadores podem fazer as respectivas participações a nível administrativo na Inspecção da Segurança Social, que é o órgão com competência para fiscalizar o cumprimento das obrigações dos contribuintes, rever as questões relacionadas com as inscrições e as contribuições e aplicar multas resultantes das contravenções.
Empresas devedoras contribuem para a instabilidade da sociedade
As empresas têm o compromisso de pagar impostos ao Estado, assim como efectuar desconto aos trabalhadores para pagar a Segurança Social, de modo a não prejudicar o bom funcionalmente dessas duas partes.
Zorobabel Mateus, sociólogo, refere que as empresas ao não pagarem podem desestabilizar a sustentabilidade das famílias e colocar em causa a sua edificação, uma vez que essa condição pode afectar a saúde mental do trabalhador que criou expectativa de que, a dado momento da vida, iria contar com a sua pensão de reforma e, assim, continuar a pagar as suas contas.
“As sociedades que têm mui- tas pessoas nessa condição tendem a ter muitos problemas com a família. E na nossa realidade, é muito comum as pessoas que estão na terceira idade ou já reformadas ainda sustentarem uma família alargada. Não tendo a pensão garantida, temos a família em situação de perigo e vulnerabilidade social”, frisou.
Para o sociólogo, é uma atitude imoral por parte das empresas e contribui para a desestruturação da sociedade e não a dignificação dos que vão à reforma. Tal comportamento ameaça o devido descanso que o profissional merece, bem como apressar a desmotivação e sentimento de frustração.
“É uma situação muito delicada, pois desse proceder das empresas, se pode assistir a família a perder o seu sustento, e membros por falta de incapacidade na busca de subsistência enveredarem por caminhos tortuosos, por um lado”.
Por outro lado, destaca que pode no seio da família, além da frustração, acelerar a deterioração do estado de saúde do trabalhador, gerar discórdia e violência em casa, sendo que uma das variáveis que se tem em conta nos aspectos de violência doméstica é a ausência de condições materiais para a subsistência.
POR: Stélvia Faria