Em causa estão mais de dois mil milhões de Kwanzas, segundo alguns professores. O pagamento das dívidas acumuladas durante anos pelo Estado foi feito por empresas privadas de “confiança do governo Província”, sem comprovativos, e o remanescente foi entregue a uma empresa sem nome para a compra laboratórios que nunca chegaram
Texto de: João Katombela, na Huíla
O director provincial da Educação na Huíla está a ser acusado de ter desviado um total 2.408.085.343,75 (dois mil milhões, quatrocentos e oito milhões oitenta e cinco mil trezentos e quarenta e três Kwanzas e setenta e cinco cêntimos) que serviriam para o pagamento de dívidas acumuladas a professores e directores de escolas que deveriam receber os subsídios de Direcção e Chefia, de Colaboração Efectiva e subsídio de Exame.
A acusação vem de alguns directores e sub-directores de escolas, chefes de secretaria e chefes de turno nomeados no ano de 2006 em toda a província da Huíla. Eles próprios fizeram os cálculos. Falando ao OPAÍS, alguns dos descontes alegam que o pagamento efectuado no ano de 2014 estava eivado de vícios, uma fez que foi procedido por uma empresa privada com a qual não possuem qualquer vínculo jurídico.
Das mesmas fontes, este jornal soube que para se efectivar o pagamento, a Direcção Provincial da Educação recorreu a 6 (seis) empresas privadas. Ao OPAÍS chegaram dois mapas de pagamento em que estão inscritos os nomes dos beneficiários, os valores correspondentes ao escalão de cada um, bem como uma cópia da nota encaminhada pela Direcção da Educação a uma empresa denominada Clarice e Filhos Lda.
Nessa nota, datada de 28 de Agosto de 2015, a Direcção encaminhou, para a empresa Clarice e Filhos Lda, o valor de 200.031.155,89 (duzentos milhões, trinta e um mil, cento e cinco Kwanzas e oitenta e nove cêntimos.
“Esta Direcção Provincial, na sequência do processo do pagamento das dívidas (Direcção e Chefia, subsídios de Colaboração e de Exame) vem, através desta, remeter a relação nominal (em físico e em suporte digital) e as contas bancárias dos beneficiários, para se proceder ao pagamento da primeira fase, num valor global de 200.031.155,89 (duzentos milhões, trinta e um mil e cento e cinquenta e cinco Kwanzas e oitenta e nove cêntimos), a serem debitados nas Ordens de Saque 3864,3864 e 3865, emitidas à vosso favor”, lê-se na nota.
Numa cópia do Mapa de Cálculos de directores nomeados em 2006, confere-se que 824 titulares de cargos de direcção e chefia do sector da Educação teriam recebido valores que vão de 1 a 17 milhões de Kwanzas, perfazendo o montante global de 4.220.021.199,81 (quatro mil milhões, duzentos e vinte milhões e vinte e um mil e cento e noventa e nove Kwanzas e oitenta e um cêntimos.
Já numa cópia de outro documento remetido ao Gabinete do governador da Huíla, João Marcelino Tyipinge, pela Direcção Provincial de Educação, constam 855 funcionários nomeados a partir de 2007. Neste mapa, das diferenças salariais de um funcionário autorizado pelo governador no dia 08 de Outubro de 2014, os detentores de cargos de direcção e chefia receberam de 600 mil a mais dos 4 milhões de Kwanzas.
O valor global nesta nota é de 2.608.116.499,64 (dois mil milhões, seiscentos e oito milhões, cento e dezasseis mil e quatrocentos e noventa e nove Kwanzas e sessenta e quatro cêntimos). Este procedimento foi apontado como irregular pelos queixosos a OPAÍS e à Rádio Mais/Huíla, alegando, igualmente, a falta de comprovativos como, por exemplo, uma folha salarial.
“Não houve nenhum documento que confirmasse o pagamento desses salários, e também houve diferença. No meu caso, eu estava no primeiro escalão, tal como um outro colega, mas este colega recebeu 5 milhões e pouco, eu só recebi 4 milhões, um valor equivalente ao dos professores do quarto ou do segundo escalão. Não há nenhum documento que confirme esse pagamento, apenas encontramos os valores nas nossas contas, não sabemos quem fez o depósito!
O que nós queremos é que apareça um documento em que conste o período que foi pago e qual é o valor real”, exige o director de uma escola do município do Chipindo. Uma outra fonte refere que a maneira como foram processados os pagamentos já demostrava uma clara fraude, pelo facto de não ter havido qualquer comprovativo.
“Nós encontramos o tal dinheiro nas nossas contas, não assinamos nenhum documento, desconfiamos logo desde o princípio, mas não reagimos porque o dinheiro já estava nas nossas contas. Por exemplo, eu recebi cerca de 4 milhões, mas ouvi alguém a dizer que teria recebido 12 milhões” revelou.
O director provincial defende-se
O director provincial da Educação na Huíla, Américo Chicoty, convocou esta Quarta-feira, uma conferência de imprensa, no seu gabinete, para refutar as acusações que lhe são dirigidas. Américo Chicoty disse que o processo de pagamento de atrasados foi conduzido na normalidade e que as acusações apresentadas por alguns directores são falsas, enquanto admite haver ainda quem que não tenha recebido os seus pagamentos, desde 2006. Sem precisar o valor alocado pelo Tesouro Nacional, o director provincial da Huíla explicou que foram processados para o Governo Provincial cerca de 3 mil milhões de Kwanzas.
“Em 2006 foi criada uma comissão multi-sectorial, constituída por representantes dos Ministérios da Administração do Território, MAPESS, das Finanças e da Educação, que se deslocou à província com o propósito de solucionar o problema, tendo validado a dívida, conforme consta no relatório que a referida comissão produziu e do qual remeteu cópias para o Governo da Província e outras instâncias superiores.
Em Agosto de 2014, o Ministério das Finanças aprovou e alocou à província o montante necessário para o pagamento de todas as dívidas, tendo de imediato, sido criada na Huíla uma comissão multisectorial que foi coordenada pelo delegado provincial das Finanças.
O director da Educação foi o coordenador adjunto, e ainda integrou dois técnicos da Delegação Provincial das Finanças, um técnico da Inspecção do Governo Provincial, um quadro do SINPROF (sindicato dos professores) e dois técnicos de contabilidade da Direcção Provincial da Educação” revelou.
Questionado sobre os meandros da contratação de empresas privadas destinadas ao pagamento dos funcionários com os quais não têm qualquer relação jurídico-laboral, o responsável da Educação respondeu que foram selecionadas o que denominou “empresas da confiança do Governo Provincial”.
Não especificou como, nem quem as seleccionou. “Em Julho de 2014 começou o processo de pagamento”, e continuou, “do arrolamento feito, devia-se pagar 3578 funcionários, entre colaborações e subsídios de exame que caíram na dívida pública, assim como os subsídios ou diferenças para os titulares de cargos de direcção e chefia.
Essa comissão trabalhou afincadamente, desde Agosto de 2014 até finais de Dezembro do mesmo ano, e, como é habitual no Sistema Integrado de Gestão Financeira do Estado, no final do ano acontece o fecho do ano financeiro, e quando isso acontece, todos os recursos que se encontram no Sistema de Gestão Financeira do Estado são recolhidos. Por isso, quer dizer que as contas são zeradas.
Conhecendo este pormenor, e porque na comissão estavam integrados técnicos das Finanças, foi opção técnica reter-se esses valores para alocar a algumas empresas da confiança do Governo da Província, para, em Janeiro do ano seguinte, dar-se seguimento ao processo de pagamentos”, detalhou.
Durante a conferência de imprensa, Américo Chicoty esclarereu que feito o pagamento, dos mais de 3 mil milhões houve um remanescente que foi entregue ao Governo Provincial, cerca de 199 milhões de Kwanzas, que foram supostamente aplicados na compra de laboratórios para as escolas secundárias da província.
Laboratórios nunca chegaram ao país
De acordo com o director provincial da Educação na Huíla, estes mais de 199 milhões de Kwanzas foram aplicados na compra de 23 laboratórios para apetrechar as escolas secundárias. Tudo foi feito de forma colegial. Daquilo que são os valores alocados inicialmente pela Direcção Nacional do Tesouro, houve algum remanescente que foi colocado à disposição e decisão de sua excelência o senhor governador.
Por sua vez, a comissão recebeu orientações de que esses recursos deviam servir para a aquisição de laboratórios para as escolas secundárias da província, o que foi feito. Foi celebrado um contrato com uma instituição, que foi devidamente homologado pelo senhor governador, para a aquisição dos referidos laboratórios, e assim foi dado por terminado o processo de pagamentos das dívidas” referiu.
Sem revelar o nome da empresa contratada para a adquirir os laboratórios, Américo Chocoty garantiu, no entanto, tratar-se de uma empresa estrangeira, que já recebeu a primeira tranche do pagamento, num contrato feito entre esta empresa, com sede em Luanda, e a Secretaria do Governo Provincial da Huíla.
No entanto, desde o ano de 2015, os laboratórios que teriam sido comprados pelo Governo Provincial da Huíla com o dinheiro “poupado” no pagamento aos professores com cargos de direcção e chefia, jamais chegaram ao país. Américo Chicoty confirma que os laboratórios ainda não estão em posse da sua Direcção, “pela escassez de divisas no país”.
“Fomos enganados”
Segundo o director provincial da Educação, na comissão criada para o pagamento dos professores com cargos de direcção e chefia em 2014, havia um quadro do Sindicato Nacional dos Professores.
Contactado por OPAÍS, o representante do SINPROF que fazia parte da referida comissão disse que em momento algum foi informado sobre o remanescente, nem da alegada aquisição de laboratórios. Osvaldo Congo declarou que o Sindicato Nacional dos Professores na Huíla foi enganado pela Direcção Provincial da Educação neste processo dos pagamentos da dívida aos professores. “Nós ficamos surpreendidos, porque em momento algum fomos informados de que os valores estavam na conta de uma empresa privada.
O procedimento adoptado não é o mais correcto, porque, tratando-se de uma comissão, era necessário informar os seus integrantes acerca de todos os passos dados. Sentimo-nos enganados porque, fazendo parte da comissão, nunca fomos informados sobre o remanescente, nem sobre a aquisição dos laboratórios”, concluiu.
“A competência é inalienável”
OPAÍS convidou um jurista para comentar o facto de a Direcção Provincial da Educação e o Governo Provincial terem contratado empresas privadas para efectuarem o pagamento das dívidas aos professores. Bernardo Peso declarou que, do ponto de vista legal, o processo apresenta vícios, já que a relação jurídico-laboral é disciplinada pelo Direito com características próprias.
“Umas das características da relação jurídico-laboral é a pessoalidade, quer dizer que nem o professor pode subcontratar alguém para fazer o trabalho a que se obrigou perante a entidade patronal, nem a entidade patronal pode subcontratar alguém para praticar um acto que é da sua competência.
Do ponto de vista legal, a Lei 16A/95 de 15 de Dezembro, sobre as Normas de Procedimentos Administrativos, no seu artigo 11º, estabelece que a competência é inalienável. Se a competência de pagar o salário é exclusiva ao empregador, neste caso da Direcção Provincial da Educação, ela não pode delegála a terceiros.
Nenhum órgão da Administração Pública, ainda que a lei o permitisse, não pode transferir uma competência sua a um terceiro”, enfatizou. Por outro lado, o jurista explicou que a confiança invocada pelo director da Educação para a contratação das referidas empresas, deve obedecer princípios legais. “Princípio da confiança não é na perspectiva do Governo Provincial, não deve ser visto dessa maneira.
O princípio da confiança administrativa ensina-nos que os actos da Administração Pública não devem gerar desconfianças da parte do administrado! Os administrados devem confiar na Administração Pública, porque ela persegue interesses públicos. Logo, quando um órgão da Administração Pública pratica um acto que em si gera desconfiança, está a violar o princípio da confiança. Legalmente, isso não é possível” considerou.