O instituto alemão Merics antecipou que a República Popular da China viverá, em 2023, um ano de imprevisibilidade, num cenário interno de “panela de pressão”, e reforçará laços económicos com a Rússia em desfavor da União Europeia (UE)
Na sua previsão anual sobre a China, divulgada Quarta-feira, numa sessão virtual a que a Lusa assistiu, o instituto com sede em Berlim considerou que este será “um ano de desafios para a UE”, que será testada política e economicamente pela incerteza.
“Um ano difícil para Xi Jinping poderá também tornar-se um ano difícil noutros locais”, alertou o Mercator Institute for China Studies (Merics), referindo-se ao Presidente chinês.
As previsões do Merics, divulgadas na véspera do Ano Lunar do Coelho, que começa Domingo, foram feitas com base num inquérito a 151 peritos e 729 pessoas em 50 países, num total de 880 respostas.
Os inquiridos concluíram que “o curso do país é muito imprevisível, excepto que continuará a apoiar Moscovo (na guerra com a Ucrânia) e a aceitar o desgaste das relações UE-China”.
Nos pressupostos, o Merics disse que depois de ter garantido, em Outubro, um esperado – mas inédito nos tempos modernos terceiro mandato como líder da China, Xi Jinping, 69 anos, viu-se confrontado, em Novembro, com protestos contra as medidas draconianas anti-Covid.
A esse protesto raro na China, Xi respondeu, em Dezembro, com a reversão da política de “zero casos”, anulando abruptamente muitas das medidas, que incluíram o confinamento simultâneo de milhões de pessoas.
Apesar de inesperada, a alteração constituiu “também uma sensação de alívio”, admitiu o presidente da Câmara de Comércio da UE na China, Joerg Wuttke, durante a apresentação das previsões.
“Todo o tipo de ameaças de confinamento, os infindáveis testes… a China gastou 230 mil milhões de dólares (1 USD equivale 503,5612) em testes no ano passado, o equivalente ao PIB (Produto Interno Bruto) do Irão”, afirmou.
Nas últimas semanas, centenas de milhões de chineses viajaram no país para celebrar o Ano Lunar do Coelho, o que faz recear uma nova explosão de infecções e de mortes.
A empresa britânica de análise da área da saúde Airfinity, alertou hoje que a China poderá enfrentar diariamente 4,6 milhões de casos e 36.000 mortos, devido à festividade.
Charles Parton, um diplomata britânico que integra o Merics, disse num painel integrado na apresentação que a reforma da saúde na China “não progrediu muito nos últimos dez anos”, pelo que deverá estar entre as prioridades para este ano.
“Pode-se fazer as camas que se quiser, mas tem de se treinar as pessoas para as operar correctamente”, justificou.
Os governos locais do imenso país asiático com mais de 1,4 mil milhões de habitantes também enfrentam problemas financeiros, segundo os peritos, o que acresce ao cenário de incerteza.
Os inquiridos pelo Merics admitiram, por isso, um cenário de imprevisibilidade e incerteza devido à “dinâmica contínua da Covid-19, ao ambiente geopolítico e a uma recessão global iminente”.
Estes factores “são vistos como riscos adicionais para o desenvolvimento económico e tecnológico da China, com potencial para exercer maior pressão sobre a sociedade chinesa”, disse o instituto liderado por Mikko Huotari.
No campo político, a expectativa é a de que Xi alargue a sua influência, com um maior controlo estatal na economia e com a liderança do Partido Comunista Chinês (PCC) a aproximar-se cada vez mais da sua visão e ideologia.
Não haverá espaço para consultas colectivas ou para o pragmatismo político das administrações num passado não muito distante, segundo os peritos.
“Manter a ordem pública e conter protestos é considerada a questão mais importante para o PCC este ano”, defenderam, antevendo uma “estrutura de poder mais centralizada”.
“O consequente aumento do potencial para protestos seria enfrentado por um regime com um Xi sem restrições no seu auge, um líder com um nível de controlo pessoal sem precedentes”, disse o Merics.
No campo externo, os participantes no inquérito consideraram que a China deverá manter “a sua ‘neutralidade’ pró-russa” na guerra da Ucrânia e que os dois países irão aprofundar os laços económicos.
As relações com a UE, pelo contrário, poderão deteriorar-se em algumas áreas, tais como as condições de trabalho de cidadãos comunitários na China, a cooperação científica e tecnológica ou investimentos entre as duas partes.
“Os inquiridos consideram que os três maiores desafios da UE são manter a unidade da UE na China, lidar com a posição da China sobre a guerra na Ucrânia e gerir a pressão dos Estados Unidos da América (EUA) para se alinhar contra a China”, disse o Merics.
A directora-geral adjunta do Comércio da Comissão Europeia, Maria Martin-Prat, disse num dos painéis que a UE tem de proteger os seus interesses económicos e “construir uma relação mais equilibrada” com a China.
Mas, à semelhança de 2022, as relações com Beijing “continuarão a ter lugar num contexto de tensões geopolíticas elevadas e difíceis”, reconheceu.
Referiu, em particular, a guerra na Ucrânia, em que China tem um “conceito de neutralidade que é muito desconfortável para os europeus”, as relações China-EUA, as tecnologias críticas e a questão de Taiwan.
A responsável pelos assuntos chineses no instituto sueco Raoul Wallenberg, Malin Oud, disse que desde 2015, a ambição da China é “tornar-se um criador de regras na cena internacional”.
Para Oud, Beijing e Moscovo querem que o mundo volte a “uma espécie de entendimento do Direito Internacional anterior à Segunda Guerra Mundial, em que a soberania e a não-interferência prevaleçam sobre os direitos humanos”.
Disse que a política europeia baseada “numa espécie de escolhas binárias ou falsas”, como a cooperação ou o confronto, deve dar lugar a uma relação caracterizada pelo realismo e por uma atenção renovada à geopolítica.
A relação com a China “será definida pelo tipo de tempestade perfeita de dificuldades que estamos a enfrentar globalmente”, disse Oud.
Alexander Gabuev, do Fundo Carnegie para a Paz Internacional, com sede em Washington, disse que a China suavizou o discurso para o Ocidente nos últimos meses, embora mantendo o apoio à Rússia.
Com isso, defendeu, Beijing quer prevenir restrições comerciais dos EUA que possam ser acompanhadas pela UE.