Contei a um amigo o meu forte interesse em conhecer o maior número de províncias de Angola, e porque achava isso muito importante antes de conhecer os vários pontos do mundo.
Ele achou a minha ideia inusitada e queria saber quantas províncias já conhecia.
A minha resposta convidou-nos a entrar num largo tempo de gargalhadas, isso porque a ele faltavam apenas conhecer seis, e a mim, bem, até então só havia posto os pés em quatro.
Ele riu e eu ri, e ficamos assim por um longo período a pensar na diferença de viagens que cada um fez.
Foi mais ou menos há quatro meses que decidi dar vida a essa aventura, e tudo começou quando conheci Benguela. Fui e voltei de lá com a lucidez de que nunca devia ficar tempo demais sobrevivendo a melancolia de Luanda, sem me dar o prazer de sentir outros sabores. Luanda é um caos, uma festa.
Já escrevi um bom par de vezes. Quem vai para lá e aproveita conhecer os melhores clubs e resorts, os melhores restaurantes e coisas assim, jamais sairá sem a percepção de que Luanda cuia.
Vivo me questionando o que leva uma pessoa a querer estar eternamente condenado em levar a vida dentro de uma prisão.
Não uma prisão física.
Mas uma emocional, mental ou sentimental.
Sobretudo esta última.
Uma prisão sentimental.
Que nos impede de vermos outras formas de vida e aceitar a possibilidade de sermos de onde estivermos.
Ainda falando nisso, lembro agora que este é o grupo de palavras que sai da minha boca toda a vez que me perguntam de onde eu sou. Digo com um ar provinciano “eu sou de onde estou.”
Meu pai, que tem o mapa de Angola nas mãos, antes mesmo de o dizer para onde eu gostava de ir a seguir, foi me introduzindo ideias sobre quais províncias e locais devia visitar.
Ouvi atentamente cada palavra e elaborei uma lista, que segundo ele, são os sítios que todo o mundo devia visitar antes de morrer. A princípio, cumprir a ordem daquela lista seria uma coisa absurda e ao mesmo tempo muito difícil de se fazer.
Então revirei, e comecei a cumprir aleatoriamente, que na minha lógica chegava a fazer muito mais sentido: vou primeiro às províncias mais próximas, e depois às mais distantes.
E assim fui fazendo.
Na ilusão de fazer promessas, sob o efeito de qualquer coisa ou em ambientes com bastante euforia, acabei devendo visitas à uma infinita quantidade de amigos e familiares que, de todas as vezes que falamos nunca deixam de fazer-me a típica pergunta:
quando é que vens para cá?
Para responder, consulto rapidamente a minha lista, e vejo que ainda está muito distante a minha ida à Cabinda ou à Lunda Sul, por exemplo.
Mas naquele dia, naquela noite, a trocar mensagens com o meu amigo, que naquele exato momento se encontrava no Uíge, surgiu-me a então conhecida necessidade de sair de Luanda, na tentativa de fugir da ansiedade e encontrar outros significados de vida.
Na sequência da nossa conversa, e depois de muito me motivar, me consciencializei: vou para Ndalatando!
A minha decisão veio com uma inquietação, a princípio, as estradas que nos levam ao interior ou ao norte do país, costumam ser muito violentas e cheias de dificuldade, depois, não há aviões nem passageiros no Aeroporto de Carianga, como dizem, um elefante branco deixado para trás, com uma imponente infraestrutura. Sendo assim, me restava apenas seguir viagem de estrada, por mais perigosas fossem.
Meu primo, que deveria receber-me na cidade, deu-me todas as orientações sobre qual autocarro apanhar e onde deveria descer quando chegasse àquela província. E ainda me sugeriu que, se quisesse levar menos tempo de estrada, seria conveniente apanhar um desses carros pessoais que vão às províncias, mas por alguma fobia ou desconfiança infantil, tive de confessar a ele que viajar em carros pequenos era uma questão totalmente fora de hipóteses. Sobretudo nas estradas angolanas.
Vou mesmo de Macon, disse. De tanto observar o meu pai e estar habituado a tê-lo como exemplo em quase tudo, acabei pegando até o seu jeito de preparar as viagens.
Meu pai possui uma antecipação irritante.
Sempre capaz de estar pronto duas horas antes para qualquer compromisso.
Nunca o vi a atrasar-se por espontaneidade, das poucas e únicas vezes que aconteceram culpa-se já a bendita senhora minha mãe, uma senhora que além de vício, tem jeito para atrasos… Tal como faria o meu pai, fui para a Macon com uma categórica antecedência de seis horas antes da viagem.
Sei que ao ler isto ele deve estar a dizer “se fosse eu, compraria o bilhete dois dias antes.”
E com razão.
Até mesmo quando vai viajar para o exterior, meu pai não dorme sem antes fazer o check-in.
Só depois, já com o voo nos seus num sei quantos pés, e com toda a certeza de que não se esqueceu de nada, aí sim, consegue desabotoar os botões e dormir.
Passado todo o tempo e sobrando só já trinta minutos para a nossa partida, lembrei então de fazer os devidos e habituais telefonemas, despedindo uns e avisando a outros que estava de viagem para outra cidade.
Enquanto falava, aproximou-se de mim um jovem, que devia ter menos de trinta e cinco anos, com uma aparência que eu nunca vi em nenhum lado, mas que parecia ter me reconhecido de algum sítio.
Falou-me umas palavras que não consegui entender direito, penso que me perguntava se também estava a viajar para Malange, mas como não entendi mesmo, disse que não, e continuei no meu telefonema.
Um dos momentos que mais me agradam nas viagens, em geral, é quando estou na sala de espera, ou se preferirem, na sala de embarque. Gosto de estar sentado e ver as pessoas na sua condição de passageiros, uns mais ansiosos que os outros.
Especialmente nos momentos em que o autocarro faz uma paragem para descarregar e levar novos passageiros.
Uns ficam ansiosos, torcendo para o seu transporte chegar e depois vem a desilusão nos seus rostos quando percebem que o carro não era aquele e que podem vir aguardar por mais meia hora.
Assim que chegou o meu carro, meti-me enfileirado com outros transeuntes, cumprindo a obrigação de apresentar os nossos bilhetes.
Assustei num repente, quase a chegar a minha vez, o mesmo jovem da aparência incomum, apareceu novamente, lançandome uma pergunta inesperada, a bem dizer, a mesma pergunta de anteriormente: boss, vais pra Malange?… Sim, disse.
Como Ndalatando é caminho para Malange, respondi positivamente, e penso ser este o meu erro, porque depois apareceu-me com outros pedidos.
Como se sabe, isso para quem já viajou pela Macon, é permitido que cada passageiro leve apenas uma criança no seu bilhete e deve metê-la ao colo, a próxima deverá pagar um bilhete.
Vocês talvez já devem ter imaginado o pedido, sim? Isso mesmo.
O nosso amigo pediu-me que eu subisse com uma das suas filhas, a mais velha, que por sinal já entende do jogo, e fingisse estar a andar comigo.
Aqueles foram os 45 segundos de bloqueio mais longos daquele dia, e eu tinha de dar uma resposta ao jovem, ao mesmo tempo em que tinha de apresentar o meu bilhete para poder embarcar.
Alguma energia positiva me dizia para aceitar ao pedido e outra energia negativa dizia para não aceitar.
Ou talvez a energia positiva é que mandava negar, e a negativa mandava aceitar.
Porque está claro que aquilo era errado.
Mas uma vez não faz mal a ninguém.
Vamos amigo, disse.
Enquanto segurava a criança às mãos, perguntei-a o nome só para me certificar, e no mesmo instante uma chuva de reflexões começou a cair sobre mim: o angolano adora fazer esquemas.
O esquema, tal como já disse Epalanga, “é o que nos faz ser verdadeiramente angolanos.”
E naquele momento eu só já pensava em como levar a cabo uma mentira até ao fim, e o que dizer se por ventura me viessem fazer perguntas a respeito da criança que carregava comigo.
Já dentro do autocarro, e passado algum tempo, os agentes da viagem dirigem-se aos bancos dos passageiros para cobrar os respectivos bilhetes.
Embora tenhamos mostrado na porta, antes de subir, fazem esta vistoria protocolar apenas para garantir que esteja tudo em conformidade.
Convencido de que estava tudo bem, porque conseguimos entrar, e não se passava nada de anormal, pusemo-nos a rir, depois de o homem cumprir com os cerimoniais agradecimentos.
Não se passar nada seria o procedimento mais normal num país com quase inexistente fiscalização, exceto quando se trata de pôr a correr as zungueiras. Mas este é já assunto de outra conversa.
Entretanto, lembro agora que nem sequer perguntei o nome do pai, nem ele perguntou me o meu, mas conversámos toda a viagem, como dois velhos amigos abordo de uma aventura com as filhas.
Isso é algo que a príncipio deve soar esquisito para uma mulher, visto que elas não conseguem, ou têm certa limitação em conversar com um estranho por longo período.
Mas para alimentar a fogueira do esquema, e mantê-lo sério, ficamos inventando assuntos para não dar bandeira.
Fala-me de Malange, mano.
Assim que o carro começou a andar, como se fosse algo combinado, todos os passageiros fizeram um silêncio de época que deu total liberdade aos motores daquele Marcopolo demonstrarem a sua fúria. E já não se ouviu mais nada.
Existem duas coisas que devo dizer sobre viajar à noite.
Primeiro, é terapêutico e libertador.
E segundo, esta libertação traz consigo algumas superstições que acabam gerando medos desnecessários, ou não.
Por exemplo, não ver o balançar das árvores, enquanto as contemplava foi algo absurdamente assustador e era visível o pavor no meu rosto ao ver aquela estaticidade que elas se mantinham.
E fiquei a pensar, será que de noite as árvores ficam dormindo, ou o que significava aquilo tudo? Uma pergunta que nunca merece resposta nível científico, porque viajar é isso também: um momento para exercitar a prática de reflexão, com perspetivas de entendermos a nossa própria vida.
Por: ULISSES KURIBEKA