Por ser pouco comum entre nós os juízes publicarem livros, OPAÍS aproveitou o lançamento da obra “O Contrato de Trabalho no Ordenamento Jurídico Angolano – antes e depois da Nova Lei Geral do Trabalho”, do juiz de direito do Tribunal Provincial de Luanda, Aldino da Fonseca, para uma entrevista com o seu autor. Os modelos de contratos de trabalho, os litígios originados pela crise financeira e a Lei da Empregada Doméstica foram alguns dos temas abordados
Entrevista de: Paulo Sérgio
Fale-nos sobre as três partes em que se encontra dividido o livro “O Contrato de Trabalho no Ordenamento Jurídico Angolano – antes e depois da Nova Lei Geral do Trabalho”.
Na primeira, a introdutória, começamos por apresentar o que é o direito do trabalho. Falamos sobre a sua origem, evolução e os princípios do direito do trabalho, bem como sobre as convenções da OIT (Organização Internacional do Trabalho) e o princípio da estabilidade no emprego.
No segundo capítulo abordamos o tema central, comparando o regime anterior da contratação, vigente na lei 02/2000, com o novo regime que consta na Lei 07/2015. Vendo a modalidade de contratação, os requisitos e a duração do contrato.
No terceiro capítulo abordamos, alguns contratos especiais de trabalho como são os casos do Contrato de Trabalho Temporário, Contrato de Trabalho em Comissão de Serviço, Contrato de Trabalho do Trabalhador Estrangeiro não Residente, a Relação Jurídica de Emprego na Função Pública e inclui ainda uma Análise do Contrato Promessa de Trabalho. Em síntese, é isso que abordamos no livro.
O que o levou a escrever esta obra de cariz científico?
Na verdade, eu considero esta obra como sendo um manual de apoio à formação judiciária, Porquê, porque os auditores de justiça, que são os candidatos à Magistratura Judicial e do Ministério Público, têm muitas dificuldades no acesso à bibliografia. E a bibliografia quando chega cá, fundamentalmente a estrangeira, nem sempre está adequada a nossa realidade, porque a nossa lei mudou muito. Então procuramos fazer uma abordagem à nossa legislação tendo como referência a bibliografia estrangeira, fundamentalmente a de Portugal, Espanha, Brasil, Argentina, Moçambique e Cabo Verde.
Quais as diferenças que existem nos contratos de trabalho, à luz do nosso Novo Ordenamento Jurídico e do anterior?
A diferença substancial prendese à extinção da obrigatoriedade do contrato de trabalho por tempo indeterminado como regime-regra. Na Lei anterior, Lei 02/2000, o legislador estabeleceu como regime- regra de contratação o contrato de trabalho por tempo indeterminado e, excepcionalmente, admitia a contratação a termo, mediante a verificação de certas condições. Por outro lado, o empregador para contratar alguém tinha que reduzir a escrito e fundamentar as razões da contratação.
Na nova Lei Geral do Trabalho, nos artigos 15º, 16º e 17º o legislador deixou em aberto que as partes livremente pudessem negociar o contrato, isto é, deixou de exigir a redução a escrito. Não imagino como é que as partes podem celebrar um contrato de trabalho a termo sem reduzir a escrito, é uma das críticas que faço neste livro, e, por outro lado, estabeleceu limites temporários demasiado longos, no meu ponto de vista, comparando com a lei anterior.
Veja-se que, para as micro, pequenas e médias empresas, o legislador permite que seja celebrado contratos a termo até um limite de até dez anos e para as grandes empresas estabelece cinco anos como limite dos contratos a termo. Uma outra situação, que no meu entender coloca o trabalhador numa situação de emprego precário, é o facto de o legislador não colocar limites ou situações que impedem uma contratação na mesma modalidade.
Pode exemplificar como ocorre isso na prática?
Imaginemos que um trabalhador celebrou um contrato a termo com duração de três meses, renovou sucessivas vezes até um período de dez anos. Chegado ao nono ano o empregador, se quiser, para impedir que o contrato se consolide e passe a vigorar como contrato de trabalho por tempo indeterminado, pode pura e simplesmente denunciar o contrato. Isto é, dizer ao trabalhador que daqui a mais um Entrevista de Paulo Sérgio mês o contrato deixará de vigorar e ele encontrar-se-á numa situação de desempregado.
Tecnicamente não houve um despedimento mas sim uma denúncia do contrato de trabalho. No entanto, a nossa lei, em abstrato, permite que o empregador mais tarde, um, dois ou três meses depois, possa contratar o mesmo trabalhador, para a mesma e inclusive com o mesmo salário com o novo ciclo de contratação de três meses com duração de três anos.
Em função da crise financeira que o país vive estima-se que há muita gente a ser desempregada. Isso tem contribuído, até certo ponto, para o aumento de processos que chegam ao Tribunal do Trabalho?
Actualmente nós ainda temos muitos litígios. Muitos processos que estão a ser julgados e analisados ao abrigo da lei anterior isto porque a Nova Lei Geral do Trabalho não dispõe de normas transitórias. Isto é, não diz que lei aplicar na vigência da nova lei. Então, vamos para a regra geral que consta no artigo 12º do Código Civil.
Porém, verificamos que os novos conflitos que estão a surgir na vigência da nova Lei prendem-se, sobretudo, com a cessação do contrato de trabalho por razões objectivas, ou seja, devido à crise económica que afectou, e de que maneira, as empresas dos sectores dos petróleos e da construção civil.
Essas empresas têm sido obrigadas a extinguir postos do mercado de trabalho e, por outro lado, as indemnizações previstas na Nova Lei Geral do Trabalho são diferentes da anterior. As indemnizações foram estabelecidas mediante a dimensão das empresas. Esta é uma das diferenças.
Um outro aspecto prende-se com o processo para o despedimento colectivo. Na lei anterior o legislador obrigava o empregador a observância de maiores requisitos, a Inspecção Geral do Trabalho tinha uma maior intervenção, as associações dos trabalhadores ou sindicatos tinham maior intervenção no processo de despedimento colectivo. Na actual lei não.
Porquê?
Houve aí uma flexibilização, no meu entender, para permitir uma mais rápida desvinculação.
Actualmente as empresas petrolíferas e de construção lideram a lista de processos em tribunal?
No meu ponto de vista, tenho verificado muitos processos ligados ao sector da construção civil e das empresas petrolíferas ou prestadoras de serviços à indústria petrolífera.
O nosso país conta desde o ano passado com um Regime Jurídico do Trabalho Doméstico e de Protecção Social do Trabalhador de Serviço Doméstico. Falenos sobre o contrato de trabalho previsto nesse diploma que, por conseguinte, não é abordado neste livro.
O contrato de trabalho doméstico é uma nova modalidade contratual, cá no nosso ordenamento jurídico, embora seja uma realidade que já existe em desde os tempos remotos. A nova lei tem o mérito de corrigir uma injustiça antiga que é o facto de as trabalhadoras domésticas, muitas delas, não estarem integradas no sistema de proteção social obrigatório, por exemplo.
Por outro lado, a questão do pagamento de horas-extra ou do trabalho extraordinário. Vem tudo determinado na Nova Lei de Contrato de Trabalho Doméstico. Porém, no meu ponto de vista, há uma dificuldade de aplicação da lei pelo facto de grande parte dos destinatários serem pessoas com um baixo nível de instrução, por um lado.
Por outro, são pessoas que, por vezes, não possuem documentação, não sabem assinar e desconhecem em absolutos os seus direitos. Há necessidade de se fazer uma campanha de esclarecimento no sentido de os trabalhadores domésticos, os beneficiários da lei, poderem reivindicar os seus direitos.
Que benefício a carteira de trabalho trará tanto aos empregados como aos empregadores?
A carteira de trabalho, que julgo ter sido inspirada na realidade brasileira, vai permitir ao trabalhador doméstico, por exemplo, justificar ou comprovar o seu vínculo laboral, por um lado. E, por outro, para efeito de contagem de tempo de serviço que poderá servir como elemento de prova. Convém esclarecer que o facto de o contrato de trabalho doméstico não ser reduzido a escrito, ainda assim não invalida o contrato. Isto quer dizer que mesmo que o trabalhador doméstico não tenha assinado o seu contrato, mas pelo facto de ele prestar esta actividade e se tiver comprovado pode sempre reivindicar os seus direitos.
Chegou o memento de todas as pessoas que tèm empregados domésticos redigirem o contrato de trabalho e tratarem a carteira de trabalho?
Sim.
Quais são os riscos que os empregadores correm ao não honrarem estas exigências?
Um dos factores que também tem levado à inibição dos próprios trabalhadores domésticos de formalizarem o seu vínculo contratual prende-se também ao facto de a obrigatoriedade de se efectuar o desconto para a Segurança Social porque uma parte deste valor é pago pelo empregado e outro pela entidade empregadora.
E o empregador, tendencialmente, vai descontar uma parte do salário do empregador para pagar o imposto da Segurança Social. Falando concretamente da questão que me colocou: se o empregador desconta no salário do trabalhador doméstico e não deposita para segurança social, estamos perante um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social.
A luz do nosso ordenamento jurídico, o Ministério Público pode dar início a um procedimento criminal. Do ponto de vista labora, o trabalhador pode vir reclamar junto do tribunal. Iniciando um processo na Procuradoria ou num outro órgão de resolução alternativa de litígio para poder reclamar o pagamento da segurança social.
“Lei obriga a indemnizar o trabalhador doméstico independentemente das razões da demissão”
Como docente do Instituto Nacional de Estudos Judiciário (INEJ), acredita que teremos um futuro risonho, no que concerne ao rácio de magistrados por população?
Julgo que sim. Tem-se apostado muito na formação. Amentou-se o número de formandos a nível do INEJ. Só para ter uma ideia, até 2010/2011 o INEJ por cada ano lectivo formavam-se cerca de 50 magistrados por ano lectivo e actualmente há cerca de 200 formandos. Há um aumento em termos quantitativo e qualitativo. É claro que a formação inicial por si só não basta. É necessário a formação contínua e a superação do próprio magistrado. O magistrado tem de ter a responsabilidade e o interesse de investigar os temas em que trabalha.
Pensa continuar a escrever?
Sim. Este primeiro livro é uma base. O tema: o contrato de trabalho no ordenamento jurídico angolano não se esgota por aqui, até porque, conforme referi, não consta na abordagem deste manual o contrato de trabalho doméstico, o contrato de trabalho do praticante desportivo, o contrato de trabalho do trabalhador estudante. Aspectos que pretendemos incluir no próximo manual. Também há necessidade de se fazer uma actualização do manual em função das alterações legislativas que têm vindo a se verificar. Por exemplo, o contrato de trabalho do trabalhador não residente já sofreu actualização legislativa.
Há mais alguma coisa que queira acrescer?
Ainda em relação ao contrato de trabalhado doméstico, há uma questão que não me colocou e gostaria de abordar por achar pertinente. Prende-se com a obrigatoriedade de indemnização por parte do empregador. Isto é, o nosso legislador estabeleceu que independentemente das razões de cessação do contrato de trabalho com o trabalhador doméstico, o empregador deverá sempre indemnizar o trabalhador pagando um salário base em função da antiguidade do trabalhador doméstico.
Compreendo as razões, se calhar terá sido a protecção da parte mais fraca que no caso é o trabalhador doméstico e dada a dificuldade de prova, mas no ambiente laboral, principalmente no doméstico, há situações que levam a que o trabalhador seja despedido e não me parece que seja justo obrigar o empregador a pagar uma indemnização em caso de despedimento quando até for por justa causa. Veja o caso de furto praticado pelo trabalhador doméstico que esteja comprovado.
Há também casos de trabalhadores domésticos que têm ao seu cuidado os filhos menores do seu empregador e que, por alguma razão, os maltrate fisicamente. E hoje em dia com os meios de vídeo vigilância que as pessoas possuem é possível obter provas sobre estes factos, mas ainda assim, no nosso ordenamento jurídico o legislador estabelece que mesmo nestes casos o empregador deve pagar uma indemnização ao trabalhador doméstico.