Domingo, dia 23 de Março, assinala-se mais um ano do Dia da África Austral, em reconhecimento à Batalha do Cuito Cuanavale, data histórica que deu nome ao monumento inaugurado em 2017. De lá para cá, a cidade em que foi construído o monumento continua adormecida ao turismo por falta de uma série de serviços indispensáveis à movimentação turística. As populações dizem-se fartas de tanto atraso. Já o governo local reconhece as dificuldades e pede ajuda ao sector privado para levar o desenvolvimento à histórica cidade do Cuito Cuanavale, na actual província do Cuando, no quadro da nova Divisão Político-Administrativa
São perto de 200 quilómetros de estrada que separam Menongue, actual capital do Cubango, da histórica cidade do Cuito Cuanavale, que agora pertence à província do Cuando, face à entrada em vigor, em Janeiro, da nova Divisão Político-Administrativa, que elevou o país para 21 entes territoriais, repartidos em 326 municípios e 378 comunas.
A viagem tranquila faz-se de carro normalmente, com excepção de um pequeno troço de mais ou menos 14 quilómetros de dificuldades devido aos buracos. Mas nem esse impasse atrapalhou a viagem, acompanhada pelo verde da natureza que, enquanto seguíamos caminho, era banhado por uma forte chuva.
Zambiano é o nome do taxista que levava a equipa do OPAÍS. Para além de nós, carregava no seu Chefe Máquina (nome vulgar da viatura Toyota Land Cruiser) outros passageiros que iam ficando ao longo da viagem.
Uns desciam no bairro Masseca, Tchingango e outros no Camussequele. Na língua Nganguela, ele se comunicava com os seus passageiros que não se importavam com a forte chuva que afugentava as pessoas à beira da estrada. A meio de tanta chuva, fomos obrigados a parar num dos pontos bastante movimentados do trajecto.
A paragem rápida foi invadida por um grupo de vendedoras de produtos diversos. Nas cestas e banheiras, as senhoras, de panos na cintura, bebês às costas e voz forte, gritavam o que de melhor comercializavam. Havia de tudo, desde o peixe seco, frutas, mandiocas, batata, milho e “pinchos”. Tetinha, 11 anos de idade, era uma dessas vendedeiras.
Apesar da pouca idade, carregava na sua pequena bacia carne de cabra e de porco grelhada que custava 100 kwanzas por cada metade, que era “devorada” pelos ocupantes da viatura que aproveitavam o aperitivo da menina para matar a fome, já que muitos saíram de casa sem terem ingerido qualquer alimento. “Não estou mais a estudar. O dinheiro que ganho aqui é para ajudar a mãe em casa”, desabafa a pequena Tetinha, enquanto servia a carne em pequenas embalagens de plástico.
Bem-vindos à Cidade Histórica
Entretanto, abrandada que estava a chuva, a viagem seguia o seu curso normal. Zambiano, o taxista, disse não ter pressa e por isso mesmo andava na velocida de equilibrada de 120 km/hora. Já na cidade, depois de quase três horas de andamento, o painel “Eu amo o Cuito Cuanavale” dava-nos as boas-vindas à histórica localidade em que decorreu um dos maiores confrontos militares da região da África Austral, a Batalha de Cuito Cuanavale, uma contenda militar que ocorreu entre 1987 e 1988 na então província do Cuando Cubango.
Estudos apontam que foi a maior batalha da guerra civil angolana e a mais longa do continente africano depois da Segunda Guerra Mundial, entre os anos 1939 e 1945. A batalha envolveu os exércitos de Angola (FAPLA) e Cuba (FAR), contra a UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola) e o exército racista sul-africano.
A vitória na batalha de Cuito Cuanavale contribuiu para a independência da Namíbia e o fim do regime de segregação racial na África do Sul. Por esta via é que o município, hoje alocado à província do Cuando, foi agraciado, em 2017, com o monumento da Batalha do Cuito Cuanavale, gigantesca estrutura que deu brilho e vida à região muito sofrida no tempo do conflito armado.
O Memorial serve, igualmente, para homenagear os que lutaram na batalha, pelo que foi definido entre os países que o dia 23 de Março fosse feriado nacional em Angola, África do Sul e Namíbia, em homenagem à vitória na batalha.
Um gigante adormecido
O memorial tem a forma de uma pirâmide, erguida num espaço de 3,5 hectares, e é constituída por um monumento em memória aos soldados que participaram dessa batalha, outro monumento dedicado à bandeira, uma biblioteca, um museu a céu aberto com a exposição de equipamentos militares utilizados e capturados aos opositores e a chama eterna do memorial.
Porém, 8 anos depois de ter sido inaugurado pelo então Presidente da República, José Eduardo dos Santos, o monumento do Cuito Cuanavale mantém a sua estrutura, sendo que nesse momento está fechado ao público para obras de requalificação e ampliação da segunda fase. Actualmente, apenas visitas protocolares estão autorizadas até que se conclua o processo de reabilitação cujas obras iniciaram em Março do ano passado
. Do conjunto de unidades a serem ampliadas e requalificadas, perfilam-se as 25 casas protocolares, biblioteca, o museu pirâmide, restaurante e a casa protocolar, estruturas que vão garantir maior comodidade aos visitantes do monumento, embora não se saiba, ao certo, o valor do investimento.
Todavia, por falta de um organismo orgânico próprio, o monumento do Cuito Cuanavale não dispõe, até o momento, de trabalhadores. O grupo de 16 funcionários eventuais que prestavam serviços cessou funções devido à falta de pagamento. Entretanto, a manutenção do espaço está a cargo de militares das Forças Armadas Angolanas que cuidam da poda, limpeza, tratamento dos capins e outros serviços.
Rico acervo
Ogrande acervo militar das antigas Forças Populares de Libertação de Angola (FAPLA), constituído por 18 peças, é um dos que mais atraem os turistas ao local. Contas não fechadas apontam para mais de 3 mil pessoas que já visitaram o local, sobretudo desde 2019, data de celebração do primeiro aniversário do Dia da Libertação da África Austral.
Naquele ano, o Chefe de Estado da Namíbia e de Angola presidiram o acto à celebração do dia 23 de Março como data da Libertação da África Austral, numa cerimónia que contou com a presença dos Chefes de Estados da região, da República Democrática do Congo, do Congo Brazzaville, da Namíbia e do Zimbabué e em que João Lourenço procedeu à condecoração de vários militares.
Entretanto, desde aquele dia, os sul-africanos, namibianos, russos e coreanos perfilam a lista de turistas que mais visitam o monumento do Cuito Cuanavale, cujo acesso ao público é taxado a uma quantia que ronda entre os 100 e os 350 kwanzas por pessoa.
A frustração dos munícipes
Apesar de toda a sua imponente estrutura, o monumento do Cuito Cuanavale não recebe ainda o número de turistas desejados desde a altura em que foi concebido, muito por conta da falta de serviços à sua volta. Esta situação tem revoltado os munícipes e outros visitantes que não se acostumam com o atraso a que está voltada a região em que está instalado aquele importante monumento.
A falta de serviços de hotelaria, restauração, transporte, unidades bancárias, lojas e outros constam das grandes queixas de quem vive ou escala a histórica cidade do Cuito Cuanavale. A juventude é a que mais reivindica a situação em que se encontra o município do Cuito Cuanavale por não atrair turistas que poderiam contribuir, mediante receitas, para o desenvolvimento da localidade.
Mario Catengue, morador, é um dos jovens que disse sentir- se triste com o facto de a chegada do memorial não ter sido motivo suficiente para as autoridades locais investirem mais nos serviços a nível do Cuito Cuanavale. Para o jovem, de 24 anos de idade, é inconcebível como é poss vel que a região, bastante sofrida no tempo de guerra, continue a ter enormes dificuldades que acabam por propiciar a fuga de cérebros que pudessem contribuir para o bem-estar do Cuito Cuanavale. “Aqui não temos nada.
É tudo muito parado. E isso é bastante desmotivador. Para estudar, temos que ir a Menongue ou a Lubango porque não temos univer- sidade nem um instituto médio. Essas condições não atraem pessoas”, lamentou. Manuel Simão é também outro dos jovens que lamentou, na reportagem do jornal OPAÍS, a vida dura que se vive no Cuito Cuanavale. Referiu que nesse momento não está a estudar por falta de unidades de ensino médio no município, situação que o tem deixado frustrado.
No seu entender, caso as autoridades pudessem criar as condições para que o Cuito Cuanavale atraísse turistas e empresários, a situação na municipalidade não estaria do jeito que está, num total abandono. “Se o pouco que tínhamos dependíamos do Menongue, agora com essa nova divisão das províncias Cubango e Cuando, acredito que as coisas estarão mais difíceis ainda.
Mas sinceramente, dói-nos muito ver o monumento do Cuito Cuanavale num verdadeiro abandono, porque à sua volta não tem nada que atraia as pessoas a virem aqui no nosso município”, apontou. Já Rosa Kindi, também moradora da localidade, diz-se, igualmente, triste com a situação de penúria e abandono a que está voltado o município.
Para a jovem, de 39 anos de idade, a única certeza que os moradores têm é que o governo abandonou as populações, a julgar pela vida difícil que enfrentam. “Não temos emprego, não temos hospitais de verdade, não temos água nem energia em condições. O que é que um turista virá cá fazer?”, questionou a moradora, visivelmente insatisfeita.
Autoridades reconhecem dificuldades e aceleram acções
Por sua vez, o administrador municipal do Cuito Cuanavale, Daniel Bimbi Alfredo, reconhece as dificuldades que a sua municipalidade enfrenta, o que, para si, não atrai o desenvolvimento do turismo local. Daniel Bimbi Alfredo converge na ideia de que o monumento da Batalha do Cuito Cuanavale devia ser um gigante na atracção de turistas de toda a parte do mundo, mas que não tem sido possível porque as condições actuais da localidade ainda são de bastante dificuldade.
Referiu que, naquilo que são as acções e tarefas da sua administração, tudo tem-se feito para a melhoria de alguns aspectos, como é o caso da iluminação pública, terraplanagem de vias terciárias e secundárias, apoio e fomento à agricultura e outros projectos.Mas, frisou, para os turistas precisam-se encontrar mais condições, desde uma boa rede hoteleira, restauração, lojas e outros serviços conexos.
“Mas, infelizmente, aqui no município, só temos três hospedarias e não são também do nível que se pretende para receber entidades. Aliás, quando recebemos aqui grandes entidades, somos obrigados a pô-las a dormir no Palácio do administrador, porque a hospedagem aqui é uma realidade quase nula”, lamentou.
Todavia, de forma a reverter o quadro, Daniel Bimbi Alfredo apelou aos empresários angolanos e estrangeiros a investirem no Cuito Cuanavale de modo a potencializar a região. Em seu entender, o governo, sozinho, não dará respostas às preocupações, pelo que é importante a participação da sociedade civil, empresários, munícipes e outros segmentos. “O Estado tem feito a sua parte para o desenvolvimento do Cuito Cuanavale. Agora, é preciso que a sociedade toda se mobilize para a alteração do quadro”, defendeu.
Acto central simbólico
Por outro lado, o jornal OPAÍS sabe que, para este ano, o Memorial da Batalha do Cuito Cuanavale não vai receber as habituais celebrações, como tem acontecido ao longo destes anos. Sabe-se, entretanto, que em função das obras que estão a decorrer, no dia 23 de Março, domingo, haverá uma pequena actividade no local, que será dirigida pelo ministro da Defesa, João Ernesto Liberdade, que estará acompanhado de uma curta delegação militar.
Na ocasião, o ministro vai, igualmente, visitar as obras de requalificação das principais estruturas do Memorial da Batalha do Cuito Cuanavale e, de seguida, deverá regressar a Luanda. Esta semana, conforme acompanhou o jornal OPAÍS, o grupo de avanço da delegação ministerial iniciou a escalar a região desde quinta-feira com a transportação de pequenos instrumentos que vão servir de apoio à celebra- ção do dia 23 de Março como data de Libertação da África Austral.