Ngola Kabangu, figura histórica da Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA) e exministro do Interior no governo de transição, partilhou suas memórias e reflexões sobre o período que precedeu a independência e revisitou momentos cruciais para o país, como os acordos de Mombaça e Alvor, e reflectiu sobre os sacrifícios feitos e as dificuldades enfrentadas pelos nacionalistas.
Para Ngola Kabangu, agora com 82 anos de idade, a independência foi conquistada, mas o sonho de uma Angola unida e justa ainda está longe de ser realizado.
O nacionalista lembrou a luta de 14 anos contra a ocupação colonial portuguesa e a celebração do Acordo de Mombaça, onde a FNLA, o MPLA e a UNITA uniram-se para traçar uma plataforma que orientasse a independência.
Retirado da vida política activa, descreveu com orgulho o papel da FNLA, em Alvor, Portugal, em Janeiro de 1975, onde foi assinado o acordo que formalizaria a independência do país, mas lamentou a interferência de ideologias externas.
“A influência do Partido Comunista português foi muito presente e prejudicial para a unidade dos movimentos angolanos”, afirmou, referindo-se ao que considerou de “tentativa de privilegiar o MPLA na estrutura do poder”.
Sobre a escolha do dia 11 de Novembro de 1975 para a proclamação da independência, Ngola Kabangu revelou que a ideia foi proposta pelo líder da FNLA, Álvaro Holden Roberto, em Mombaça.
Segundo este nacionalista, o dia foi acordado entre os movimentos e aprovado pelos portugueses em Alvor – mas a saída precipitada do alto-comissário português, Leonel Cardoso, a 10 de Novembro, criou um vazio na transmissão formal do poder.
“A retirada do Leonel Cardoso sem cerimónia foi um erro histórico, um verdadeiro desrespeito ao povo angolano e ao processo de descolonização”, desabafou Ngola Kabangu.
Regresso ao solo pátrio
Quando, finalmente, se deu o momento de retornar a Angola, em Janeiro de 1975, Ngola Kabangu referiu que o governo português criou condições para limitar a actuação da FNLA na capital do país – acto que ele e os seus correligionários interpretaram como uma tentativa de manipulação política.
“Quiseram que ficássemos confinados em Luanda – mas nós protestamos. Até que acabamos por nos instalar no Grande Hotel Universo, nas Ingombotas, em Luanda e, depois, expandimos a nossa presença para outras regiões, principalmente no antigo São Salvador”, relatou.
À época, as interacções entre os movimentos de libertação trouxeram novos desafios, mas, para Ngola Kabangu, o ponto mais alto foi ver o início da guerra civil logo após o fim do colonialismo. “Angola foi lançada numa guerra fratricida que poderia ter sido evitada”, lamentou.
A desilusão com a Angola actual
Quase meio século depois da independência, Ngola Kabangu mostra-se triste ao ver uma Angola muito distante dos ideais de justiça e unidade que ele e os seus compatriotas almejavam.
“Sonhávamos com um país que valorizasse o sacrifício dos que lutaram. Hoje, a realidade é outra: os angolanos enfrentam uma profunda divisão social e desigualdades persistentes”, criticou, sublinhando que, enquanto a independência libertou o país do domínio colonial, o calar das armas é, no entanto, frágil, e falta uma verdadeira reconciliação nacional.
O nacionalista acredita que a nação precisa de um projecto de união e um esforço genuíno para reconciliar o povo. Reforça que Angola de hoje carece da “paz social e da paz dos corações”. O caminho, segundo ele, passa pelo resgate de valores e pela criação de um programa nacional que contemple a inclusão de todos os angolanos, independentemente da sua filiação política ou étnica.
Aprender com os erros
A chegada da primeira delegação do MPLA a Luanda deu-se no dia 8 de Novembro de 1974, tendo-se estabelecido num edifício cedido por Dona Amália, no Rangel, uma apoiante local da causa do partido dos ‘camaradas’, onde inaugurou a sua primeira sede suburbana.
O deputado Mário Pinto de Andrade, do MPLA, reconheceu a importância histórica do 8 de Novembro no processo que conduziria à proclamação da independência nacional, um ano mais tarde.
Mas, desapaixonadamente, fez uma análise histórica profunda sobre as razões que dificultaram a união dos movimentos de libertação nacional durante o período colonial português.
O político lembrou da falta de confiança mútua como um dos maiores entraves para a unidade. Segundo Mário Pinto de Andrade, a divisão entre os três principais movimentos nacionalistas deu-se pelas diferenças ideológicas, estratégias distintas e desconfianças históricas. Igualmente, citou o impacto do regime colonial português que, durante a década de 1940, reprimiu severamente qualquer tentativa de organização conjunta, promovendo divisões internas.
“Nunca houve uma unidade real. Tentativas existiram, mas não se concretizaram”, afirmou. O deputado lembrou também das trajectórias individuais dos líderes dos movimentos, muitas vezes moldadas pelas suas origens sociais e contextos políticos distintos.
“O nacionalismo angolano nasceu fragmentado, com líderes que, na sua maioria, se desconfiavam uns dos outros por razões culturais e políticas”, explicou. Ao olhar para o futuro, o deputado reafirmou a importância de se aprender com os erros do passado como forma de garantir que a paz conquistada em 2002 seja preservada.
Ressaltou o papel das novas gerações na construção de um país unido e próspero, e apelou aos jovens a pensarem com a razão, e não apenas com o coração, como ocorreu no passado. “Temos uma missão: amar Angola e preservar a sua unidade. Precisamos superar as divisões e olhar para o futuro, e evitar manipulações políticas que possam nos levar de volta ao conflito”, concluiu.
Testemunhos históricos da rua 8 de Novembro
Eva Maria, de 73 anos, moradora da rua da Dona Amália desde 1970, guarda na memória o dia em que a primeira delegação do MPLA chegou à sua rua, em 1974. Na época, com apenas 24 anos, testemunhou o entusiasmo da população ao ouvir líderes como Lúcio Lara, Ludi Kissassunda e Lopo do Nascimento, que discursavam sobre o futuro independente do país.
“Lembro-me das promessas do camarada Lúcio Lara, que dizia que um dia estaríamos bem, que a independência estava a chegar. Hoje, com 73 anos, vejo que nada mudou. É triste”, lamenta. Já a anciã Carlota António Francisco, conhecida como “Titi Loló”, também com 73 anos, vive na rua da Dona Amália desde 1951. Com 24 anos na época da chegada do MPLA, ela descreve a alegria e a esperança que marcaram o momento. “Vi Lúcio Lara, o Pedalé, Saydi Mingas e Lopo do Nascimento e outros.
A dona Amália, uma mulher branca que apoiava o partido, cedeu o prédio ao partido, e lá funcionava uma loja de produtos agrícolas no rés-dochão”, disse. Hoje, o prédio é habitado por várias famílias e controlado por um dos moradores, mas já abrigou um departamento do Ministério dos Antigos Combatentes e Veteranos de Guerra.
“Titi Lolo”, que à época era membro da JMPLA e hoje integra a OMA, lembra-se com carinho do primeiro Presidente da Angola independente, Agostinho Neto. “Tenho muitas saudades dele. Ele era a nossa esperança, e quando soubemos da sua morte na Rússia, ficamos desesperadas. Foi um vazio enorme”, contou.
A luta e o sonho de um país inclusivo
A UNITA de Jonas Savimbi escalou o território nacional a 26 de Fevereiro de 1975, proveniente de Lusaka, na Zâmbia. Em Angola, a organização estabeleceu a sua sede no Huambo, na então “Casa Branca”, localizada no bairro da Fátima. Hoje, a estrutura encontra-se em ruínas, num reflexo dos conflitos que viriam a seguir a independência.
Um ano antes, em 1974, o general Ernesto Mulato, nacionalista da UNITA, que também partilhou as suas experiências do período de descolonização, acompanhava, a partir de Londres, no Reino Unido, o golpe de Estado em Portugal, e de longe vislumbrava os sinais do aproximar do ruir do regime de Marcelo Caetano.
Destacou o significado histórico do retorno dos movimentos de libertação ao solo pátrio, considerando-o um reconhecimento do esforço e da resistência contra o colonialismo português. E resumindo, descreveu os Acordos de Alvor, firmado no início de 1975, como um processo viciado, do qual, segundo ele, “o governo português já tinha decidido entregar a independência ao MPLA”, marginalizando os demais movimentos. Explicou que a UNITA, fundada em 1966, enfrentou imensas dificuldades, ao competir com as alianças internacionais de peso da FNLA e do MPLA.
No entanto, com o apoio de alguns países africanos e da China, a UNITA conseguiu construir uma presença dentro do país. “O nosso objectivo foi sempre uma luta mais próxima do povo, uma resistência eficaz ao colonialismo e um modelo de condução que respeitasse os angolanos”, disse. Reflectindo sobre o país actual, Ernesto Mulato mostrou-se triste ao perceber que “Angola está longe de alcançar o sonho dos nacionalistas”.
Defensor de uma Angola inclusiva, que reconheça os esforços de todos os angolanos, livre de divisões políticas e de protagonismo partidário – para ele, o verdadeiro legado da independência deve ser a soberania do povo, com governantes que sirvam como verdadeiros servidores da nação.
Apesar das frustrações, Ernesto Mulato acredita que os princípios da luta pela independência – cidadania, igualdade e valorização das populações – continuam a ser um norte para construir a Angola que os nacionalistas almejavam. E conclui lembrando que a realização do povo angolano é à medida do sucesso da luta pela libertação.