Em entrevista ao jornal O PAIS, o presidente da Convergência Ampla de Salvação de Angola – Coligação Eleitoral (CASA-CE), Manuel Fernandes, reflectiu os problemas sociais, políticos e económicos dos angolanos. Entre outros assuntos, o dirigente da coligação fundada em 2012 falou também do desaire que teve nas eleições de 2022, visto que não elegeu qualquer deputado, conservando apenas o valor percentual que permite regressar ao jogo político eleitoral em 2027. Em 2012, a CASA-CE conseguiu quatro deputados, que na corrida eleitoral de 2017 saiu de quatro para oito. Apesar da queda, Manuel Fernandes acredita que melhores dias virão
O ano 2023 está a terminar. Há mais rosas ou espinhos?
Antes, agradeço o jornal O PAÍS pela oportunidade que me dá para falar sobre a vida do país e saber que ideias é que temos para Angola.
Penso que 2023 é um ano sofrível para os angolanos, porque se consolidou completamente a falsa expectativa da governação, não trouxe novidades positivas na vida dos angolanos, muito por conta das promessas feitas para a melhoria das condições de vida dos angolanos.
Volvidos mais de seis anos, a situação das famílias piorou. Os angolanos já não querem saber de expectativas.
Os angolanos querem solução e não discursos. Este ano era expectável que se podia baixar a inflação e reforçar o poder de compras das famílias, bem como valorizar o salário dos trabalhadores, infelizmente não é isso que está a acontecer. Cada dia que passa é mais visível apertar o cinto.
Até os nossos mais velhos, que pegaram em armas para libertar Angola do colonialismo, estarão defraudados com a actual situação.
Não é isso o que eles pensavam, devíamos ser donos do nosso destino, mas conferindo bem estar a população.
Hoje, a indigência é a característica da maioria da população. Quase todo o angolano é pedinte. Não é vício, é a força das circunstâncias.
Que natal é que o cidadão angolano terá?
Não vai passar daquilo que é a nossa tradição, mas será um dia de reflexão. Os angolanos terão, talvez, o natal mais sofrível da história do nosso país.
As famílias não terão o necessário para comemorar, porque o natal é dia de família para se fazer uma reflexão sobre o ano que termina e perspectivar o ano seguinte, mas a condição social não permite.
Perante o que acaba de frisar, acha que os cidadãos estão num beco sem saída? Como disse, o país sempre foi governado com base nas expectativas e o que estamos a ver, hoje, está completamente esgotado, no meu ponto de vista.
Não há algo novo para dar a este povo. O país tem um conjunto de desafios e precisa de reformas profundas para podermos carrear na via do desenvolvimento e avançar para o bem estar social.
Pode apontar algum caminho para tirar Angola da situação em que se encontra?
Neste momento, o grande desafio para quem governa é garantir o bem estar social para os angolanos.
Cada angolano deve ter um posto de trabalho e através do seu suor ter um rendimento que permita sustentar a família.
O cidadão tem que estar empregado para cumprir as suas obrigações fiscais, assim o Estado vai buscar receitas nos impostos directos e indirectos.
Quando temos uma população activa empregada, a economia flui por força do consumo. O Estado tem que criar programas para ter uma banca robusta e que financie a economia.
Os números actualmente não mostram isto?
Uma coisa são as projecções económicas e outra coisa é a realidade factual. Nos relatórios aparece que Angola tem Produto Interno Bruto (PIB) “bonito”.
Qual é o nosso Produto Nacional Bruto (PNB)? As projecções devem ser feitas com base no PNB, porque o resto do PIB vai lá fora.
O que entra, dos angolanos lá de fora, para o país é uma ninharia. Temos que inverter o quadro. Não podemos ser somente um país que exporta matérias primas.
Temos que ser também um país que explora e transforma a matéria prima em produto acabado para diversificar a economia, “despetrolizando-a”.
No desporto diz-se que quem está na bancada vê melhor o jogo. É o seu caso?
Enquanto actor político, nós temos ideias, só que infelizmente no nosso país há o vício de que as ideias válidas só são daqueles que estão a governar.
Já falamos muitas vezes de que o actual Governo está esgotado. Era necessário, com toda a humildade, promover-se uma conferência nacional de quadros de todas as áreas do saber. Temos que ter a coragem de sair da matriz da partidocracia para a cidadania.
Temos que desenvolver o país com base na cidadania e não com base nos caprichos político- partidários. Não custa nada. A solução de Angola requer uma envoltura mais abrangente.
Tem que se ter a coragem de apontar os caminhos para o desenvolvimento sustentável.
Refere-se a uma cópia do então “Governo de Unidade e Reconciliação Nacional (GURN)?”
O GURN foi um governo de integração em que havia um programa de um partido político que estava a ser executado e deu-se apenas a oportunidade dos outros participarem com membros de várias forças partidárias.
O que se pretende, actualmente, é mesmo pensar num programa de desenvolvimento para o nosso país e que pudesse estabelecer balizas.
Por exemplo, está-se a falar que vamos conseguir investimentos, porque temos essa parceria com os EUA, muito bem, mas como é possível um empresário investir no país se há um decreto a dizer que as importações do nosso país, em termos de matérias primas, devem ser apenas sobre aqueles produtos que não temos…
Pode explicar melhor?
Isto belisca aquilo que são as normas da Organização Internacional do Comércio (OIC) de que Angola é membro.
O que o Governo deve fazer, talvez, é agravar as taxas de importação e não proibir a importação.
Um empresário, seja americano ou chinês que vem aqui investir, vai-se ver se efectivamente tem o produto nacional como matéria prima, mas se o produto nacional fica-lhe mais caro, ele prefere trazer de um outro país onde é mais barato.
Não há nisto uma política protecionista?
O proteccionismo não se faz desta forma. Ele faz-se, mas através de medidas económicas e não por decretos. E acho que uma das medidas que podia concorrer para isso é o agravar das taxas de importação dos produtos que são produzidos aqui e não proibir.
“Precisamos ser mais humildes e saber ouvir os outros”
E quanto ao Orçamento Geral do Estado (OGE), o que se pode dizer?
O nosso Orçamento Geral do Estado (OGE) ainda é uma previsão de receitas e despesas. Ha países em que os orçamentos são reais, porque se elabora com base nas receitas do ano anterior. Aqui prevê-se as receitas e depois é planificado um conjunto de despesas.
Infelizmente, as despesas são sempre superiores às receitas e depois recorre-se ao endividamento interno ou externo.
Temos que sair deste quadro para sermos um país forte, de modo que o orçamento seja mais elaborado à luz das receitas fiscais.
O nosso país é rico, tem pessoas inteligentes, precisamos ser mais humildes e saber ouvir os outros.
Cumpre-se com a função social, económica e política do OGE?
A função que mais tem respondido o OGE é a política, porque a social e a económica estão distantes.
É só olhar para o contexto social dos angolanos, vai ver que os números que se apregoam nele estão longe de satisfazer o interesse global.
Grande parte da população vive na miséria. O nosso OGE não tem estado a dar resposta à função social. Houve agora um aumento na função social…
Quando se fala de um aumento na educação é aquele que está abaixo de 10%, enquanto na região da SADC recomenda-se 20% e 15% para a saúde.
Não se pode resolver o problema do desenvolvimento de um país com uma educação fraca e com uma saúde precária.
Precisamos inverter o modelo de gestão do país em que se prioriza mais as Forças Armadas e a segurança.
Acha que não se faz investimento na educação?
Faz-se muito pouco. Os professores precisam ganhar bem. O desenvolvimento não se mede pelas infraestruturas, mas sim pela qualidade dos cidadãos. Não temos classe média. Temos miseráveis, pobres e milionários.
Há mais qualidade ou quantidade no sector da educação?
A educação precisa de uma reforça profunda e não aquela reforma que veio deformar. Hoje temos pouca qualidade.Temos, sim, bons professores, no entanto, precisa-se investir mais.
É normal não haver, quase, uma escola pública de referência?
O ensino privado terá tomado conta do ensino público. Lamentavelmente, devia ser o inverso. A referência que podemos ter são as escolas católicas, que demonstram uma certa qualidade de ensino.
Porquê só nas escolas católicas?
Há maior rigor. Há maior seriedade. Há maior empenho dos quadros e aqui vê-se melhor a diferença.
É constrangedor que das 100 melhores universidades públicas africanas nenhuma é angolana. Temos licenciados e até mestres que mal sabem escrever.
É uma crise nacional identificada?
É claro que sim. No sector da educação isto é reconhecido. Ideias existem, falta é fazer uma reforma de facto no sector da educação.
A oposição tem sempre o mesmo discurso?
Quem está no poder pensa que a oposição tem os olhos vendados e só tem discurso único de contrariar.
O nosso ponto de vista é aquilo que é a realidade. Estamos na comunidade. Os outros têm a dificuldade de não falar com o povo.
Não andam de autocarro e nem vão aos mercados. Não temos este problema. Quem não conhece a dificuldade das pessoas não pode projectar soluções.
E o crime em Luanda?
Há um conjunto de factores que fazem com que a situação criminal esteja sempre em alta.
As nossas cidades, num olhar rápido, são do tipo urbano e suburbano. No segundo, há falta de energia eléctrica, há becos, não há arruamentos, logo há um ambiente propício para a delinquência atingir níveis assustadores.
Luanda tem cerca de oito milhões de habitantes e não tem um corpo policial a altura e garantir segurança e tranquilidade às pessoas.
Em Cacuaco, viuse na televisão, delinquentes que assaltaram casas e deixaram muitas famílias em pânico.
A Turma do Apito conseguiu ter resultados positivos na sua zona, no Sambizanga, em Luanda, mas ouvi e fala-se que vai ser extinta.
A crise da família angolana é real ou aparente?
Crise da família existe, aliás um velho ditado diz que “numa casa quando há fome todos gritam e ninguém tem razão”, quando grande parte da população activa é desempregada, consegue-se logo pensar que tipo de família é que temos.
Há também a crise de valores. Hoje em dia, em algumas famílias, por força da pobreza, a prostituição é um facto.
Há pais a orientarem as filhas a prostituírem-se para levar alguma coisa em casa para comer. Isto é uma inversão de valores que resulta de políticas económicas erradas.
O povo angolano é tão simpático que mesmo a passar fome ou uma enfermidade consegue exteriorizar o seu sorriso.
Algumas igrejas aproveitaram-se da crise da família para engarem os fiéis?
É no meio social feminino e da pobreza extrema onde efectivamente é mais fácil a igreja prosperar, porque muitos desses líderes religiosos são autênticos aldrabões. Muitas pessoas hoje não apregoam a fé, mas comercializam a fé.
Este é o contexto social, quanto maior for a pobreza, maior é a crença no feitiço, nos milagres, mas as pessoas se esquecem que nada cai do céu.
Mesmo que Deus ajudar, é preciso sair de casa. As pessoas, perante esta realidade social, vão à igreja para encontrar uma mensagem de esperança que permite acreditar no futuro.
Por que razão é que não se controla a expansão do fenómeno religioso?
É possível haver controlo. Temos instituição para isso. O fenómeno religioso está a tomar contornos alarmantes.
Há série de acusações nestas igrejas que estraga o futuro da família e põe em perigo a nossa segurança nacional. Numa rua pode-se encontrar 15 ou 20 igrejas e com poluição sonora.
“Devo reconhecer que houve um investimento sério no sector da saúde”
Havia um slogan nos idos anos 90 do século passado “saúde para todos no ano 2000”, chegou-se lá?
Em Angola já se projectou quase tudo. Não há e nem houve saúde para todos no ano 2000. Devo reconhecer que houve um investimento sério no sector da saúde, depois do seu consulado, o Presidente João Lourenço vai ser recordado como a pessoa que veio revolucionar os grandes hospitais do país.
Hoje em dia, enfermidades que só se encontravam solução no estrangeiro, hoje em dia aqui já temos. Temos que ter também a humildade de reconhecer isso.
E os hospitais primários?
Esses hospitais também precisam de maior atenção, porque são hospitais de proximidade em que todo e qualquer cidadão da periferia, com dor de cabeça ou outra doença, vai para lá. Por isso, é aquele precisa também de maior atenção. Os hospitais ainda passam receitas, não estão recheados de medicamentos.
E o Raio X e as análises que se fazem fora do hospital para se apresentar no mesmo hospital por falta de material e reagentes?
Falta uma política concreta para revolucionar o sector da saúde no país.
Tem que se inverter o quadro. O saneamento básico nesta fase das chuvas em Luanda é o tema do dia…
A situação está caótica. Digo, em abono da verdade, que os nossos hospitais enchem muito, por um lado, por conta da falta de saneamento básico.
Não há saneamento básico em condições. Sou do Cazenga, nunca vou deixar de ser do Cazenga e quando se falou da sua requalificação, por via do Tala Hady, que agora é Tala Alice, eu disse que aquilo não era requalificação.
O Cazenga tem uma realidade dura, porque ainda há lá casas de pau-a- pique e de madeira e tem muitos becos.
Quanto à sua requalificação, é necessário encontrar um modelo com todos os serviços públicos.
O Cazenga real está intransitável nesta fase?
Nunca houve uma planificação real para melhorar a condição dos munícipes do Cazenga. A Sétima Avenida foi escavada e hoje é a vala da morte e nota-se falta de vontade política. Não há projectos que permitem ter uma periferia mais organizada.
“O discurso da guerra já não precisa existir”
A CASA-CE está fora das decisões políticas no presente ciclo, para quando o seu regresso?
É uma fase da nossa vida política, mas estamos a trabalhar para melhores dias.
Não é fácil ficar de fora, porque tens a ideia, mas não a exprimes no espaço apropriado. A nossa reflexão não pára aqui.
Estamos já a fazer o nosso trabalho para regressarmos ao centro oficial de discussão política da vida dos angolanos.
A saída da CASA-CE da Assembleia Nacional terá causado algum mal estar aos jovens?
Isto anda claro.
Recebo votos de encorajamento de jovens todos os dias e também de pessoas mais experimentadas da vida política nacional e sabemos que o futuro nos reserva algo melhor, porque a democracia é um facto.
Em Angola ainda há pessoas que têm resistência em aceitar a democracia?
É sempre um processo difícil e o homem tem sempre dificuldade em resistir às mudanças.
Saímos do sistema de partido único, mas a consciência do passado ainda reside em algumas pessoas e isto é o que nos leva a não evoluir.
O discurso da guerra já não precisa existir. A nova geração actualmente vai sendo mais perigosa do ponto de vista da bajulação.
A bajulação prejudica o desenvolvimento de qualquer Nação. Que balanço faz dos dois mandatos que a CASA-CE teve na Assembleia Nacional? Foram positivos.
A CASA-CE conseguiu fazer, pelo menos na Assembleia Nacional, com que se respeitasse escrupulosamente a cultura de lei. Isto
deu-se graças ao presidente do grupo parlamentar, André Mendes de Carvalho (Miau), que era uma pessoa muito legalista e os regimentos da Assembleia Nacional já são respeitados.
Trabalhamos muito para as discussões da Conta Geral do Estado, assim como para a transmissão dos debates em directo.
Foi uma “luta” conjunta e saímos todos a ganhar. Hoje há mais democracia na Assembleia Nacional?
É preciso mais e tem que haver uma revolução positiva. O que acontece na Assem bleia Nacional são mais discursos políticos e menos debates.
O “ciclone” que passou pela CASA foi forte?
Sentamos e analisamos os pontos fortes e fracos das últimas eleições e neste ano estamos a reflectir para nos reerguermos no próximo ano.
Os partidos da coligação continuam a fazer o seu trabalho, porque entendo que a campanha eleitoral começa logo no dia seguinte após as eleições.
E a eventual dissolução misturada ao regresso de Abel Chivukuvuku à CASA-CE?
Não verdade o regresso de Abel Chivukuvuku, ele está muito bem na Frente Patriótica e tem outros horizontes políticos. Quanto à dissolução, também não é verdade.