O Presidente da República, numa jogada, estendeu o seu tempo de graça, puxou para si o clero católico, reforçou a sua posição no MPLA, responsabilizou Portugal pela questão Manuel Vicente e anunciou a rescisão de contratos lesivos ao Estado.
POR: José Kaliengue
João Lourenço inaugurou, ontem, uma fase nova na política angolana. Apresentou-se, como Chefe de Estado, a uma entrevista colectiva com cerca de duzentos jornalistas, nacionais e estrangeiros. É uma evolução, como outras se seguirão com ele e com quem o suceder um destes dias, lá mais para afrente nos anos. A vida é assim mesmo. E ainda bem que ele o fez. A entrevista, por si só, é o facto mais importante. João Lourenço permitiu que se fizessem algumas leituras sobre a comunicação social, é vasta. O número e diversidade de jornais, rádios, agências de notícias, canais online e canais de televisão deu para perceber a variedade de veículos que existe em Angola, ao contrário da ideia de haver apenas um punhado de meios controlados pelo Estado.
Lourenço foi questionado por órgãos com cunho confessional e também alguns marcadamente ligados a partidos e dirigentes de partidos da Oposição. A vinda de um jornalista sedeado na Huíla, por exemplo, deu ainda mais dimensão à representatividade da classe em Angola. Lourenço brilhou e colocou os jornalistas sob escrutínio de uma audiência que teria milhares de perguntas. João Lourenço apresentouse muito bem preparado, ainda bem para ele. Enfrentou questões “venenosas”, temas que estão na ordem do dia no plano político, com especial destaque para as desinteligências que se suspeita haver no interior do seu partido.
Aí ele soube manter uma postura de Estado e elegante, embora tivesse dito que mantém, com o presidente do seu partido MPLA, José Eduardo dos Santos, a relação normal entre o presidente e o vice-presidednte do partido e a relação normal entre o presidente de um partido e o Presidente da República. Faltou a expressão “cordialidade”, para não falar em amizade, e tudo teria uma interpretação diferente quando lembrou que José Eduardo dos Santos prometeu retirar-se da vida política activa em 2018. Este ano, portanto.
JL sabia ao que ia
João Lourenço não é nenhum “estreante ingénuo” em termos de comunicação, já dirigiu este departamento no MPLA, sabe bem como agem os jornalistas, sabe passar a sua mensagem, sabe exactamente o que o país quer ouvir, tal como soube passar para Portugal o seu recado sobre o Caso Manuel Vicente na medida e peso que julgou suficientes. Passou a bola a Lisboa e escondeu as suas jogadas posteriores. Não se abriu, deixou para Lisboa a responsabilidade de jogar no escuro tentando antever a próxima jogada angolana. Lourenço fê-lo com a elegância fria de um xadrezista no gesto simples de desligar o microfone, como os mestres param o relógio depois de movimentarem a torre no tabuleiro.
A elegância de João Lourenço começa num gesto também pedagógico para a nossa realidade, que é a sua pontualidade. A entrevista começou segundos antes da hora marcada, quase um minuto. O Presidente faz sempre por nunca se atrasar. Foi também muito conciso nas suas respostas, assertivo, passando apenas o que lhe convinha (é sempre assim numa entrevista), mas com a certeza clara no efeito de cada palavra. Por exemplo, sobre a extensão do sinal da Rádio Ecclésia, uma batalha antiga, Lourenço capitalizou de imediato a comunidade católica, a maioria do povo angolano. Mas estabeleceu também tréguas importantes com o clero. O próximo comunicado da CEAST deverá ter um tom diferente do habitual. Além disso, ao falar das ceitas, João Lourenço piscou o olho aos cristãos seculares, responsáveis, para se juntarem ao Estado na tarefa de travar o avanço de ceitas e religiões “perigosas” socialmente e até ligadas ao terrorismo. Ou seja, estendeu ontem o seu estado de graça.
Contratos ‘lesivos ao Estado’ vão acabar
Sobre o contrato para o porto de águas profundas do Dande, o sinal é claro: os contratos que considerar lesivos ao Estado vão ser “rasgados”. E há muitos, de muito milhares de milhões. As parcerias público-privadas estão no crivo. Há que fazer contas para sabermos os montantes em jogo. Voltando aos temas “picantes”, negou a perseguição aos filhos do antigo Presidente da República, José Eduardo dos Santos por via da cessação de alguns dos seus negócios com o Estado, considerou que exonerou Isabel dos Santos da presidência da Sonangol por conveniência de serviço, sem necessidade de o explicar, como fizeram presidentes anteriores (e o último foi o pai da engenheira Isabel dos Santos) e disse que o rompimento do negócio da TPA com empresas de outros dois irmãos Dos Santos foi em defesa dos interesses do Estado.
Está feita luz sobre a resposta sobre a sua relação com o anterior Presidente. Lourenço Presidente da República vê-se obrigado a respeitar a Constituição e a lei, disse- o, e será neste espírito que deverá exonerar em breve Filomeno dos Santos da direcção do Fundo Soberano, deixou-o subentendido. Sobre a corrupção, seu tema de eleição, foi claro: há a gasosa, mas o que mais o preocupa é a alta corrupção, de gente bem paga e com regalias do Estado. E dissese com coragem e determinação para acabar com impunidade. Por fim, como resultado desta primeira entrevista, Lourenço largou a sua aceitação nacional, ganhou mais simpatias internacionais, piscou o olho aos investidores e diferenciou-se de outros presidentes africanos da nossa região como Zuma, na África do Sul e Kabila na RDC, seriamente questionados, apresentando-se como porta-estandarte da modernidade política. Emergiu um João Lourenço Superstar.