O Decreto Presidencial n.º 69/21 de 16 de Março – que aprova o Regime de Comparticipação Atribuída aos Órgãos de Administração da Justiça pelos Activos, Financeiros e Não Financeiros por si recuperados, de 10%, segundo alguns juristas ouvidos pelo jornal OPAÍS tem algumas lacunas, entre as quais a falta de indicação de uma instituição que venha a fiscalizar a aplicação de tal verba
O Decreto Presidencial que vigora há sensivelmente 19 meses, isto é, desde a data da sua publicação, em Março de 2021, diz que a comparticipação é repartida pela PGR e pelos tribunais, quando o activo recuperado for declarado perdido a favor do Estado, mediante decisão condenatória.
Nos casos em que o activo for recuperado pela PGR, sublinha o diploma, a percentagem da comparticipação é atribuída totalmente a este órgão. Os órgãos que irão beneficiar são a Procuradoria-Geral República (PGR) e os Tribunais. A ambos é atribuída a percentagem de 10% do valor líquido recuperado, io que significa que caberá a cada um receber 5% do mesmo valor.
Nas situações em que a PGR recuperar de forma individual os activos a favor do Estado receberá de forma individual a totalidade dessa percentagem correspondente a 10% do valor líquido recuperado, conforme previsão legal no referido decreto.
Sobre este assunto, o jurista Lievem Cambonga entende que a má aplicação deste Decreto Presidencial prejudicará sobremaneira o combate à corrupção, na medida em que os próprios órgãos da Administração da Justiça estarão preocupadas em trazer a juízo com o propósito de os seus agentes satisfazerem-se desses benefícios, suscitando um conflito de interesses pessoais e público.
“Outro aspecto relevante é o facto de que o mesmo Decreto Presidencial não indicar qual- quer instituição para fiscalizar a aplicação dessas verbas, deixando uma lacuna, que pode incentivar várias condutas arbitrárias por parte da gestão dos activos recuperados”, disse.
Questionado se este Decreto despertará ou não nos procuradores o desejo de defender e condenar para receberem a percentagem, Lievem Cambonga disse que, apesar de o decreto não especificar as condições que se esperam ver melhoradas, e se essas condições podem ser de carácter pessoal ou somente institucional, isto não implica que os Magistrados Judiciais e do Ministério Público estejam isentos de cumprir o que está previsto, nem mesmo outorgar caminho distinto dos dinheiros percentuais que poderão receber.
“O espírito do legislador, ao consagrar o Decreto Presidencial n.º 69/21 de 16 de Março, consistiu na atribuição de melhores condições de funcionamento aos Órgãos da Administração da Justiça, e não propriamente enriquecer os Magistrados Judiciais e do Ministério Público”, reforçou.
Uma mais valia para os Órgãos de Justiça
Por outro lado, para o jurista André Mingas, com esta com- participação de 10 por cento por decisão conjunta do órgão recuperador e da entidade beneficiária do activo é uma mais-valia contribuindo para o suprimento das necessidades dos tribunais e garantia das condições logísticas essenciais para a administração da justiça pelos tribunais em no- me do povo.
A ideia que fica subjacente neste caso, disse, é a da forte relação de interdependência dos órgãos de soberania onde, antes da existência do Decreto Presidencial nº 69/21, apenas o Estado se beneficiava dos ganhos da recuperação dos activos fruto do combate à corrupção, enquanto os Órgãos de Administração da Justiça ficavam numa posição de mera subserviência, sem o devido investimento para o avanço da tal propalada reforma da justiça, podendo aqueles órgãos serem facilmente corrompidos pelos infractores.
A segunda nota apresentada pelo entrevistado diz respeito ao facto de os Órgãos de Administração da Justiça tornaram-se o objecto de fortes ataques, de to- dos os que não concordavam com as decisões, ou não teriam medo de ser abrangidos por elas. “Assim, uma boa parte da elite angolana, que tem receio de ir parar a um tribunal, começou a criticar ferozmente os tribunais, as suas decisões, o seu funcionamento, a sua independência. O objectivo destas atitudes é muito simples: deslegitimar as de- cisões judiciais, desvalorizando o seu peso no combate à corrupção”, defende.
Todos estes factos levam ao questionamento do papel da justiça em Angola, sublinhando-se, sobretudo, a sua lentidão e eventual politização. Na verdade, disse, esta discussão acaba por ser benéfica porque do questionamento surge a discussão e a necessidade de reforma. Uma nota não menos importante é a necessidade que há em garantir que os Órgãos de Administração da Justiça não se tornem politizados, segundo André Mingas, apesar de abraçarem uma bandeira do poder político e, dessa forma, se mantenham imparciais e independentes, to- mando as suas decisões sem influências, de forma transparente e tecnicamente fundamenta- da no direito.