O Jardim da Cidade Alta me seduz tão indolentemente, não só pelo cume em que está alojado o centro do poder angolano, como também pelo esplêndido olhar que consegue projectar na observação da vasta Luanda continental e Luanda marítima, ou seja, a Cidade Alta pode ser o pedestal para um “Estado anfíbio” no longo prazo.
A despeito de Estado anfíbio, Halford Makinder advogava o Heartland, o núcleo do poder terrestre, congregando território, população, produção de alimentos e de matérias-primas, enquanto que Alfred Maham e Nicholas Spyman defendiam o Rimland, as margens costeiras que bordejavam os países como indutores ao poder marítimo e, por isso, estando em melhores condições para o garante do desenvolvimento nacional.
Suponho que, olhando para o Heartland e o Rimland angolanos, à recepção de Joe Biden no Jardim da Cidade Alta, João Lourenço, como anfitrião e jogador de xadrez, é hoje um dos líderes mais bem posicionados em África, pois, em termos de poder nas relações internacionais, transitará de um chefe de Estado para um estadista e, em termos da hierarquia dos Estados, evoluirá para a arena de mais respeito, prestígio e confiança nos centros do poder mundial.
Ora, donde provém isso? As relações Angola-EUA revestem-se de um passado híbrido, mas muito negro, podendo ser caracterizadas em duas categorias: relações comerciais petrolíferas pacíficas com forte presença das suas “sete irmãs” e relações conflituosas exacerbadas com Kissinger e Savimbi, numa diplomacia de choques em sentido contrário. Para se sair dessa encru-zilhada, homens como A.
Neto, José Eduardo dos Santos, Paulo Teixeira Jorge, Mbinda, Loy, Venâncio de Moura, João Miranda, Assumpção dos Anjos, Jorge Chikoty, Manuel Augusto, Téte António, equipados com o bisturi da diplomacia limpa e um ilimitado querer, puderam transformar a grande potência hegemónica de mais de 200 anos em parceiro estratégico de um país que, nos seus 49 anos de vida, parte considerável desse tempo foi dedicado à sobrevivência da soberania diante da opção ideológica, modelo de economia centralizado e estratégia militar conectada à Rússia.
Apenas em 1993, o Presidente Bill Clinton decidiu reconhecer Angola, abrindo uma estrada de relações amigáveis.
O livro de José Patrício – Angola-EUA, Os Caminhos do Bom Senso – clareia muito dos atalhos íngremes e escorregadios da história. Hoje são contos de outro rosário. Nesta linha de pensamento, o xadrez é, sem dúvida, a metáfora clássica para observar os jogos de poder aqui presentes.
Primeiro, a geopolítica mundial está a ser virada de patas para o ar. A Ucrânia, se levasse em consideração o legado africano, que diz – a sorte do cão dormir fora de casa não é a mesma que a sorte do cabrito – talvez não estivesse em sarilhos, a gritar; segundo, vou falar baixinho nos cantos do Jardim da Cidade Alta para ninguém ouvir: os EUA classificam a União Europeia como maus jogadores de xadrez ao permitirem a África nas mãos da China e da Rússia; terceiro, a África do Sul, sua aliada tradicional, bandeou-se para os BRICS, criando laços de dedo e unha também com a China e Rússia; quarto, Angola tem tudo para ser um “Estado anfíbio”.
Com efeito, depois da Era do Não-Alinhamento, das alianças e contra-alianças ideológicas, da Reconstrução Nacional entalada no endividamento à China, e sendo um Estado estável, com reformas estruturantes favoráveis, é agora ou nunca, tendo como ‘letmotiv’ o Corredor do Lobito.
Juntando os ingredientes da diplomacia económica, Angola vai procurando alinhavar a política externa recorrendo ao princípio do multialinhamento para jogar em 4 tabuleiros, a saber: tabuleiro dos EUA, da Rússia, da China e da União Europeia, respeitando as especificidades de cada um. A Rússia e a China estão zangados. De igual modo, ao folhear as páginas da história, lidar com os EUA é um acto de coragem.
Não lidar, também é outra coragem. Por isso, João Lourenço, na Cidade Alta, mandou todos os “Think Thanks” para o ginásio, preparar a massa muscular para o grande trumunu! Um dos xeque-mates é a entrada do Presidente Donald Trump no jogo. Pelo currículo do líder americano, tudo pode acontecer.
Onde quer que o jogo caminhe, no labor contínuo da diplomacia, não há casos, nem portas encerradas. Logo, a mais importante conclusão da visita de Biden é a necessidade urgente de, colectivamente, mudarmos a nossa maneira de pensar Angola.
Chega de desvalorizá-la com gritaria! De igual modo, não fica bem no meio dessas honrarias o país constar do mapa das vergonhas da fome. Por outra, sempre constituiu elementar prioridade trazer a Luanda os Presidentes dos EUA, da Rússia (já realizada por Medvedev em 2009) e da China.
Finalmente, temos de tirar o chapéu ao “salto de cavalo” dado por João Lourenço no grande tabuleiro da geopolítica. Muita gente ficou céptica em lidar com o urso e a águia ao mesmo tempo. Implica cuidados, e que cuidados! Como dizia Mandela: “Tudo parece impossível até que seja feito.” Se isto é bom ou mau, só o tempo dirá!