Os líderes das associações cívicas OMUNGA e AJPD consideram que os últimos acontecimentos no sistema judicial angolano podem desencadear numa “crise institucional sem precedentes”, caso não sejam tomadas medidas assertivas urgentes para fazer face ao problema
Nos últimos dias vários escândalos têm aba- lado o coração da Justiça em Angola, sendo que o mais recente está relacionado com a resistência e a consequente renúncia do cargo de Juiza Conselheira Presidente do Tribunal de Contas, Exalgina Gambôa, que estará supostamente envolvida em vá- rios escândalos, tendo por isso sido constituída arguida pela PGR, pelos crimes de peculato, extorsão e corrupção. De igual modo, o presidente do Tribunal Supremo, Joel Leonardo, tem estado associado a várias polémicas judiciais, tendo, inclusive, a UNITA, principal partido da oposição, pedido a sua demissão, embora o Presidente da República, João Lourenço, questionado sobre o facto em entrevista à
Rádio França Internacional (RFI), tenha respondido que “do seu conhecimento não há provas sobre o envolvimento do magistrado em crimes”. O director executivo da organização não-governa- mental OMUNGA considera que as denúncias sobre alegadas interferências no sistema de justiça angolano já não são de hoje. João Malavindele refere que o poder Judicial anda a reboque do poder Executivo. E acrescenta que as debilidades que o mesmo enfrenta resulta do facto de haver, sim, interferência do poder Executivo no exercício do poder Judicial.
O responsável considera, por outro lado, ser importante que, nesta condição, e gozando dos poderes que confere a Constituição, o Presidente da República tome de- cisões que possam garantir o mínimo de condições para que o sistema judicial possa funcionar de forma independente.
“Estamos a falar de um sistema de justiça que não tem um orçamento próprio, dependendo da fatia que lhe é cabimentada pelo Orçamento Geral do Estado (OGE). E, como sabemos, quem manuseia o OGE é o poder executivo, daí que se assiste os problemas que os nossos tribunais enfrentam”, disse. Para o activista, os actos de corrupção que se assiste um pouco por todo o sistema de justiça resulta do facto de os seus operadores ostentarem salários “medíocres”, alia- do à falta de condições de trabalho.
“São actos que não dignificam a própria classe. Aliás, não é possível que se garantam condições de luxo para um conselho económico do Presidente da República, quando os magistrados vivem situações muito críticas”, afirmou. Na opinião de João Malavindele, é urgente que se opere uma revi- são constitucional de modos a que o poder Executivo deixe de interferir no judicial, havendo, deste mo- do, interdependência entre os poderes.
“Realidade contradiz o PR”
Em torno dos pronunciamentos do Presidente da República a recente entrevista à RFI, João Malavindele considera que a realidade contra- diz, sobremaneira, as declarações de João Lourenço. “Se olharmos para o que se passa no Tribunal Supremo, e agora o Tribunal de Contas, estamos a caminhar para uma crise institucional sem precedentes. É preciso que tenhamos coragem e sentido patriótico de virmos a público assumir as debilidades que a nossa justiça enfrenta”, salienta.
Malavindele aconselha, no entanto, que se tomem providências assertivas e urgentes para que o país não venha a cair num colapso institucional, o que seria, do seu ponto de vista, mais grave. E acrescenta que o celeuma que se criou nos últimos dias tem rostos, mas também soluções, bastando que haja alguma coragem de se responsabilizar os seus autores.
Quebra de confiança nas instituições
Em declarações a O PAÍS, o presidente da Associação Justiça, Paz e Democracia (AJPD), Serra Bango, considera que há, de facto, uma quebra de confiança no sector, e defende que isso pode estar a ser motivado pelas tentativas de influência política nos magistrados. Questionado se no clima actual os angolanos podem confiar nos seus tribunais, Serra Bango referiu que a confiança decaiu significativamente por parte dos cidadãos angolanos, porque o sistema, de um modo geral, não está a cor- responder à expectativa. “Está efectivamente a colocar em causa a confiança e a expectativa jurídica dos cidadãos.
E quando isso ocorre, seguramente nenhum cidadão se vai rever neste tipo de sistema, o que quer dizer que é urgente que se deva olhar para estas situações”, afirmou. Para este jurista, quer os tribunais cooperantes, que têm responsabilidade acrescida, têm de ter uma postura mais adequa- da; quer o próprio Executivo deve proporcionar as condições necessárias para que os tribunais funcionem na sua plenitude. Serra Bango ressalta ainda que há durante este período de tempo uma discussão muito grande relativamente à justiça perante o sistema judicial angolano.
O sistema tem-se estado a colocar em causa face a uma série de denúncias e também de reclamações – quer por parte dos oficiais de diligências de justiça angolanos, quer por parte da população do modo geral, assim como por parte dos magistrados judiciais. “Na verdade, o que acontece é que os órgãos dos tribunais superiores têm responsabilidades acrescidas na administração da justiça angolana. Entretanto, para que se possa ter uma Justiça no país, é preciso que estes tribunais exerçam o seu papel nos termos da lei e da Constituição. Mas o que acontece é que há situações em que há ingerência política no sistema judicial”, conclui.