O dia 23 de Março é celebrado como o “Dia da Libertação da África Austral”. A efeméride tem como epicentro a Batalha do Cuito Cuanavale, o maior confronto militar da guerra civil que ocorreu em Angola. No entanto, apesar de o continente assinalar este marco, a região Leste da República Democrática do Congo continua a registar conflitos. Esforços estão a ser feitos para o alcance da paz naquela zona, cujo mediador é o Presidente angolano, João Lourenço
A Batalha do Cuito Cuanavale foi o maior confronto militar da Guerra Civil Angolana, ocorrida entre 15 de Novembro de 1987 e 23 de Março de 1988. O local da batalha foi o Sul de Angola, na região do Cuito Cuanavale, na província do Cuando-Cubango, onde se confrontaram os exércitos de Angola (FAPLA) e Cuba (FAR) contra a UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola) e o exército sul-africano. Foi a batalha mais prolongada que teve lugar no continente africano desde a Segunda Guerra Mundial.
Até hoje, as narrativas e memórias sobre a batalha são objectos de debate. Não obstante, o evento tornou-se o ponto de viragem decisiva na guerra que se arrastava há longos anos, incentivando um acordo entre sul-africanos e cubanos para a retirada das suas tropas e a assinatura dos Acordos de Nova Iorque, que deram origem à implementação da resolução 435/78 do Conselho de Segurança da ONU, levando à independência da Namíbia e ao fim do regime de segregação racial (Apartheid) que vigorava na África do Sul.
Em entrevista a este jornal, o historiador e sociólogo Cornélio Caley considera o 23 de Março co- mo o dia mais alto na libertação da África Austral, e que nunca se perderá pelo manancial da sua história. “No dia 23 de Março, nós libertamo-nos do sistema ocidental, ou seja, do colonialismo.
Este foi o ponto mais alto que devemos lembrar e regozijar. Claro, os problemas que temos hoje são regionais, e nós temos que nos unir para os enfrentar e ultrapassar. Este é um dos nossos grandes desafios nos dias de hoje”, disse. Na busca de soluções para a estabilidade no continente, o também mestre em estudos africanos, aponta a juventude como peça fundamental, a quem é incumbida a obrigação de estudar profundamente tudo o que se passou no continente, munir-se de conhecimento e unir instrumentos suficientes para enfrentar os desafios de hoje, porque acredita na força dessa juventude africana.
Olhando para os desafios actuais, Cornélio Caley lembra que os africanos conseguiram ultra- passar períodos tão difíceis da sua história, e questiona como não seria possível ultrapassar os problemas actuais. Cornélio Caley chama os africanos a acreditarem em si, e sublinha que apesar de a globalização trazer muita influência de fora, os africanos têm que pôr o pé no chão e manterem-se firmes nos seus ideais.
A resolução dos nossos problemas não virá de fora, a solução está entre nós. É preciso olharmos para essas populações pelas quais lutamos para libertar, é preciso irmos às bases, manter a aproximação e dialogar com essas populações”, disse. Enalteceu, por outro lado, o papel que Angola tem assumido na liderança da Conferência Internacional da Região dos Grandes Lagos, ao empenhar-se na busca de diálogo para pacificar as regiões em conflito no continente.
A busca por uma solução colectiva
O historiador e especialista em relações internacionais, Gaudêncio Kalapasse, lança um olhar para a realidade que se vive hoje na região Austral do continente, e aponta, sobretudo, a instabilidade económica, social e política que os povos nesta zona enfrentam. O analista defende algumas medidas que possam ajudar na mitigação destes problemas, referindo que as mesmas passam, necessariamente, por uma solução endógena, em que chama as lideranças dos países da Região Austral a encontrarem uma plataforma de diálogo que permita uma solução colectiva regional.
Avançou que os chefes de Estado ou de Governo devem procurar vincar as suas políticas públicas mais voltadas para a satisfação das necessidades dos seus governados, primando por uma cooperação Sul-Sul, olhando para a África e encontrar parcerias para dialogar e não continuar a ser uma espécie de agentes dos Estados ocidentais. “Devem os líderes desta região perceber que, se agirem de forma isolada na defesa dos seus recursos naturais com o Ocidente, sempre serão utilizados como bodes expiatórios para desestabilizar a região e, consequentemente, fomentar conflitos entre si, como ocorre hoje com o Ruanda e a RDC, daí que a coesão e uma visão de uma África Unida seria a mais sensata”, apelou.
No que respeita ao papel desempenhado pelas organizações regionais, como a União Africana e a SADC, a fonte afirma que estas não têm cumprido com o seu verdadeiro papel. “Existe um princípio em organizações internacionais, segundo o qual as organizações só valem quando conseguem cumprir a função pela qual foram criadas. Infelizmente, não é o que ocorre com estas duas instituições, dando uma sentença de autêntica inoperância, basta ver os vários exemplos que vão ocorrendo ao longo do tempo em África, como os golpes de Estado, as alterações constitucionais para as lideranças se manterem no poder, os conflitos entre um e outro Estado, as grandes calamidades que vão tomando conta de vários pontos da região que, infelizmente, estas organizações nada fazem se não o ocidente que até chega mais rápido”, salientou.
O especialista aplaude a diplomacia externa de Angola, alegando que tem conseguido gizar estratégias no âmbito da sua diplomacia externa na região, primeiro pela responsabilidade que carrega enquanto presidência, como uma estratégia de prevenção e resolução de conflitos. E, tratando-se de uma das regiões muito conflituosas por conta da sua história, pela existência nesta região de recursos muito cobiçados e a existência de forças estranhas influenciadas pelo Ocidente, daí a necessidade de uma atenção mais redobrada. “Angola, de forma geral, e o Presidente João Lourenço, de forma particular, não é por acaso que já lhe foi atribuído o título de ‘campeão da paz’, tem desempenhado uma diplomacia visível e um esforço sem igual para a pacificação da região, até porque na política internacional, a segurança de um Estado começa no Estado vizinho, e a estabilidade da região pressupõe a estabilidade de Angola”, concluiu.
Uma data para reflectir a África Austral
Mário Gerson, também especialista em relações internacionais, considera, por seu turno, o 23 de Março uma data impactante na região Austral do continente africano, pelo facto de ter sido liberta e viver hoje as suas independências. “O Zimbabué, a África do Sul e a Namíbia foram os últimos países da África Austral a conseguirem as suas independências, este fac- to foi também conseguido, graças ao sacrifício de muitos africanos. Portanto, é uma data para mais uma vez reflectir sobre o continente”, disse.
O analista sublinha que, questões relacionadas ao desenvolvimento, ao crescimento económico e à mobilidade constituem ainda desafios para os países da região Austral, e lamenta o facto de não se ter conseguido ainda uma zona de livre comércio e de integração regional. “A segurança é também um problema ainda prevalecente em alguns países da região. Sabemos que o processo de libertação desta região foi difícil, hoje tem independente, mas existem ainda zonas cinzentas que envolvem conflitos armados. Há ainda um longo caminho a ser percorrido para se atingir o tão almejado desenvolvimento”, avançou, defendendo a aposta em investimentos estruturantes, quer do ponto de vista da mobilidade, quer do ponto de vista do comércio, das infra-estruturas, eliminando, desta forma, qualquer tipo de barreira que atrase o desenvolvimento da região.
Conflito na RDC
Apesar de os países da região austral do continente serem todos soberanos, em que cada um procura dar o melhor para os seus povos, vida digna e bem-estar, a região Leste da República Democrática do Congo continua a registar conflitos que impedem a sua progressão para o desenvolvimento. Assim, o Leste da RDC está há mais de duas décadas mergulhado num conflito alimentado por milícias rebeldes e pelo Exército, apesar da presença da missão de paz da ONU (Monusco) e forças da SADC a que se juntou um contingente militar angolano, constituído por mais de 500 homens das FAA.
Angola tem como um dos objectivos da missão adoptar o plano geral conjunto para a resolução da crise no Leste da RDC, acelerar a implementação efectiva do roteiro de Luanda, em coordenação com o processo de Nairobi para a promoção da segurança na região Leste da RDC e a normalização das relações políticas e diplomáticas com a República do Ruanda. Por esse motivo e, uma vez mais, com mediação do Presidente da República de Angola, João Lourenço, os homólogos da RDC, Félix Tshisekedi, e do Ruanda, Paul Kagame, aceitaram voltar a sentar à mesma mesa para encontrarem uma solução para a crise de paz e segurança no Leste da RDC. O continente nesta zona austral regista ainda esse conflito, numa altura de celebração da sua libertação de forças pro-ocidentais.