Ao dissertar o tema “Constituição angolana de 2010 – transição ou transacção?”, Carlos Feijó destacou a necessidade de um olhar africano sobre o direito constitucional, criticando a predominância de referências ocidentais nos estudos jurídicos do continente. O académico defendeu que as jurisdições africanas precisam desenvolver a sua própria doutrina constitucional, adaptada às realidades políticas e sociais locais.
“O constitucionalismo africano ainda privilegia autores ocidentais em detrimento da teoria africana. Precisamos de um pensamento jurídico que reflicta as nossas especificidades”, afirmou Feijó, catedrático da Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto. Na sua intervenção, o jurista questionou se Angola viveu uma transacção ou uma transição constitucional entre a Lei Constitucional de 1975, a de 1991-1992 e a Constituição de 2010.
Segundo ele, esta distinção é essencial para se compreender o percurso constitucional do país. Argumentou que, nos anos 90, a democratização em África resultou frequentemente de processos de transacção política, nos quais os regimes estabeleci- dos negociaram as mudanças com forças emergentes.
Em Angola, disse, essa transacção ocorreu com forte controlo do poder instituído. Carlos Feijó levantou também questões sobre a legitimidade e os limites do poder constituinte. “O poder constituinte pode fazer o que quer ou está condicionado por acordos e consensos políticos pré-estabelecidos?”, questionou, referindo-se às negociações mutipartidárias dos anos 90.
Para ele, os compromissos assumidos nestes fóruns deveriam ser considerados vinculativos, ampliando a interpretação da Constituição para além do texto escrito.
Os desafios da construção constitucional em Angola
Dando continuidade ao debate, Onofre dos Santos apresentou uma visão histórica da evolução constitucional angolana, realçando os desafios enfrentados na sua construção desde a independência. Advogado de profissão e juiz conselheiro jubilado do Tribunal Constitucional, lembrou que, em 1975, a elaboração da primeira Lei Constitucional ficou a cargo de um pequeno grupo de juristas, muitos sem filiação partidária.
Entre as questões críticas discutidas à época estavam a definição da nacionalidade angolana e a escolha do primeiro Presidente da República. Sobre a nacionalidade, Onofre dos Santos revelou que a legislação permitia que os angolanos mantivessem a cidadania portuguesa, criando um sistema de dupla nacionalidade que ainda persiste.
“A minha proposta inicial era que essa dupla nacionalidade fosse universal, mas foi considerada ingênua”, confessou. Outro ponto relevante abordado foi o modelo de governo e a escolha do Presidente da República.
Inicialmente, previa-se, segundo o também docente, uma eleição indirecta, com o Chefe de Estado escolhido pela Assembleia Constituinte, mas esta proposta foi substituída por um modelo moldado pela conjuntura política da época.
Onofre dos Santos sublinhou, ainda, que Angola viveu os seus primeiros 35 anos de independência sob constituições transitórias, reflectindo as constantes mudanças na estrutura do poder. “A Constituição de 2010 é definitiva? Ou ainda precisaremos de novas revisões?”, questionou, apontando que a prática tem mostrado a necessidade de ajustes contínuos.
A transição constitucional e os fatores determinantes
Por sua vez, Rui Ferreira, juiz- conselheiro-presidente jubilado do Tribunal Constitucional, abordou detalhadamente o processo de transição constitucional em Angola, diferenciando-o de uma mera transação política. Segundo Rui Ferreira, a transição constitucional representa uma mudança profunda no regime político, enquanto a transacção é o resultado de negociações sobre os termos dessa mudança.
“O nosso país fez, de facto e de direito, uma transição constitucional entre 1991 e 2010, consolidando a Segunda República”, explicou. Ademais, apontou factores internos e externos que impulsionaram esta mudança. No plano internacional, destacou o fim da Guerra Fria, a Perestroika na União Soviética e a queda do Muro de Berlim.
Internamente, factores como o conflito armado, a crise económica e a crescente contestação política foram determinantes. O ex-presidente do Tribunal Constitucional detalhou a estratégia do MPLA para conduzir a transição sem rupturas.
“A decisão de avançar para o multipartidarismo foi tomada em 1989, mesmo em condições de guerra. O objectivo era garantir uma transição sem instabilidade governativa”, ressaltou. Rui Ferreira apresentou documentos históricos que mostram a evolução do processo, destacando que a transição deveria ter sido concluída em três anos, mas prolongou-se por 19, dividida em três grandes etapas, nomeadamente 1989-1991 – com a revisão pontual da Constituição; em 1992 – com a nova Lei de Revisão Constitucional, que vigorou até 2010; e 1998- 2010 – com tentativas de aprovação da Constituição definitiva, concluídas apenas em 2010.
A conferência proporcionou uma reflexão aprofundada sobre os desafios e avanços da trajectória constitucional angolana. As intervenções de Carlos Feijó, Onofre dos Santos e Rui Ferreira revelaram que o processo constitucional angolano foi marcado por um equilíbrio entre transacções políticas e transformações estruturais.
As questões levantadas, como a necessidade de um constitucionalismo africano, os desafios históricos da elaboração das leis fundamentais e a transição política sem rupturas, continuam a ser temas de debate no cenário jurídico e político do país.
O acto
Vale lembrar que a República de Angola celebra, a 11 de Novembro de 2025, o 50.º Aniversário da Independência Nacional. Neste sentido, o Tribunal Constitucional promoveu, neste ano, as Jornadas dos 50 Anos do Constitucionalismo Angolano, uma iniciativa de elevado valor jurídico, académico e cultural, que reflecte a evolução constitucional do País ao longo de meio século.
As Jornadas tiveram início a 05 de Fevereiro de 2025, na província de Luanda, com a realização da Conferência Internacional “O Constitucionalismo como Expressão da Independência e Soberania dos Estados”, ano em que igualmente a Angola celebra 15 anos desde a implementação da sua Constituição, agora lançada em braile no quadro da inclusão de todos os cidadãos.