Visitei Benguela recentemente. Depois de duas passagens fugazes em tempos já longínquos, achei que era altura de conhecer melhor a província e desfrutar das suas inúmeras belezas naturais. Confesso que gostei, belos parques naturais, belas praias, cidades calmas e com pouco trânsito, a contrastar quase na perfeição com a agitação de Luanda.
Surpreendeume, no entanto, o terrível cheiro a urina que inundava muitas das ruas por que passei. Espantou-me ainda mais ver que, na rua do hotel onde estava hospedado, as pessoas urinavam aos grupos, a qualquer hora do dia, sem qualquer pudor ou tentativa de se esconder. Era como se fosse a coisa mais natural do mundo.
E talvez fosse. Lembro-me de que, nesta viagem, apanhei um autocarro de uma companhia recém-entrada no mercado. Com autocarros novos, pessoal sorridente e bem disposto, e ainda oferecem aos passageiros água e um pacote de bolachas.
Gostei particularmente de quando o motorista, depois de me oferecer os meus snacks, perguntou-me educadamente: mais alguma coisa?
Sorrri e disse que não, mas, na altura, não sabia que as casas de banho, as poucas existentes, estavam em muito mau estado de conservação e que a companhia não tinha nenhuma ao longo da via. Mas isso é, para nós, o mais normal.
Quem já viajou de autocarro pelo interior do país deve estar demasiado acostumado às constantes paragens para que os passageiros façam as suas necessidades onde der, muitas vezes, à beira da estrada, próximo de mercados onde se vendem alimentos.
Angola continua a figurar no topo dos países com as mais altas taxas de defecação ao ar livre e esse problema não é exclusivo das zonas rurais, muito pelo contrário, parece que é ainda mais grave nas zonas urbanas.
Em Luanda, só de danos a infraestruturas, a urina já derrubou postes de luz, cabines eléctricas, pedonais e provocou a erosão de pequenos troços de vias públicas, e essa é apenas a parte cómica, porque a defecação ao ar livre é responsável pela contaminação do ar, dos solos, das fontes de água e é causadora de uma série de doenças para as quais o país gasta rios de dinheiro com hospitais, médicos e medicamentos, quando a solução, mais simples e mais eficaz, passa por eliminarmos esse problema de andarmos a fazer as nossas necessidades fisiológicas em tudo quanto é canto.
Por enquanto, e nessa nossa forma de fingir que queremos resolver os problemas, vamos todos distribuindo culpas.
Os cidadãos dizem que a culpa é do governo que não constrói urinóis públicos, o governo diz que a culpa é dos cidadãos que não sabem preservar os poucos que foram instalados, sobretudo na baixa da cidade de Luanda, os empresários que querem investir no sector dizem que a culpa é tanto do Governo, que não cria incentivos, quanto dos consumidores que não querem pagar pelo serviço, apesar dos riscos para a sua saúde, ao passo que os consumidores dizem que a culpa é dos empresários que cobram preços altissímos por um serviço que encontra no alívio ao ar livre o seu mais directo e económico concorrente.
Para mim, tentar encontrar culpados é como aquela questão do ovo e da galinha, que só serve para nos desviar do que é essencial: encontrar soluções.
O que verifico é uma falta de cultura de uso de casas de banho já enraizada no nosso subconsciente colectivo.
Embora seja difícil de reconhecer, a esmagadora maioria dos angolanos não cresceu usando uma casa de banho e, por isso, não tem “gravado” nem na memória, nem nos hábitos, o que é usar uma; sobretudo uma que ainda tenha todos os equipamentos a funcionarem.
Boa parte dos angolanos construiu as suas próprias casas e, com poucos recursos, a casa de banho é a última parte da casa a receber atenção e algum esmero.
A falta de água corrente na grande maioria dos bairros do nosso país também faz com que as pessoas se acostumem a essa falta de higiene.
Assim, grande parte dos cidadãos vem de habitações sem casas de banho ou com casas de banho sem o mínimo de condições.
Daí se percebe porquê que quase todas as instituições angolanas (desde as mais pequenas até as maiores) têm um total desprezo pelas casas de banho.
Exceptuando as instituições recém-construídas, quase não se encontra uma instituição angolana pública ou privada com uma casa de banho digna.
Limpa, com água corrente, sabão, com papel, com sanitas e outros equipamentos essenciais a funcionarem.
Mas, como referi, esse é um hábito que trazemos das nossas casas ou das nossas comunidades.
Os gestores pensam em tudo e para tudo gastam dinheiro, mobília, carros, viagens, até festas, mas as casas de banho ficam para último plano porque já estamos demasiados acostumados a viver sem elas.
A escola devia servir de contrapeso.
Uma vez que grande parte das crianças angolanas não tem, em casa, uma casa de banho digna, devia ser na escola onde eles encontrariam uma, talvez a primeira de suas vidas.
Seria, então, na escola onde aprenderiam (na prática) a importância do saneamento, da higiene, pessoal e colectiva, aprenderiam sobre a importância (e o impacto para a saúde) de fazer as suas necessidades em locais adequados e aprenderiam ainda como usar uma casa de banho correctamente e como preservá-la.
No entanto, a realidade nas escolas é ainda mais dura e os dados indicam que quase metade das escolas de Angola não tem casas de banho, o que obriga os alunos a fazerem as suas necessidades ao ar livre, nas redondezas do recinto escolar.
Portanto, é a própria escola, que se diz ser uma fonte de virtudes, que ensina os meninos a usarem a rua como casa de banho, que ensina os meninos que passar o dia numa instituição sem casa de banho não faz mal nenhum, que os ensina que, em última instância, uma casa de banho suja, sem água, onde os equipamentos não funcionam, com as paredes escritas, inclusive com palavrões, é sempre melhor do que nada.
Só que, aqui, nos esquecemos de que esses meninos crescem e tornam-se dirigentes, gestores, empresários e, portanto, dão às casas de banho a importância, a atenção e o tratamento que eles aprenderam quando crianças.
Uma vez que, como diz o ditado, é de pequeno que se torce o pepino, já quase todos acreditamos que uma casa de banho digna e funcional é um acessório de luxo, de que só os ricos precisam e merecem, e, por isso, um desperdício.
Não admira, portanto, que o assunto da defecação ao ar livre é quase um assunto inexistente. Não se discute, não se fala, não incomoda, não se pensa nas suas consequências para o ambiente e para a saúde e, assim, não se muda.
E, se nem o impacto para a nossa saúde e para a saúde das nossas crianças nos faz mudar de atitude, tão pouco será o impacto sobre o turismo que nos fará mudar.
Ainda assim, insistirei nesse tema e espero que outros se juntem a mim. E, na próxima vez que subir a um autocarro para explorar uma nova província, quando o motorista sorrir para mim e perguntar-me “vai querer mais alguma coisa?”, vigorosamente responderei “sim, uma casa de banho, por favor”.
Por: SÉRGIO FERNANDES