Ainda no rescaldo do discurso sobre o Estado da Nação proferido pelo PR João Lourenço, na pretérita Segunda feira 16, dentre muitos aspectos políticos destacáveis, cabe-nos apreciar aquele que é provavelmente o mais polémico e turvo, o repto lançado pelo Presidente sobre ilegitimidade de proferir os mesmos discursos por outras entidades que não o Presidente da República.
Como era de esperar as reações não tardaram a surgir, no calor do momento os deputados da bancada parlamentar da UNITA apuparam o PR chamando-o “ditador!” e mais tarde escudaram-se com o nº 2 do artigo 45.º da CRA, que atribui o direito de resposta e de réplica política às declarações do Executivo para justificar suas posições.
Por ora, é necessário fazer uma análise jurídico-política e social para compreender o sentido e alcance das declarações do PR, bem como os limites e aplicação dos artigos 45.º, 118.º e alínea b) do 119.º, todos da Constituição da República de Angola.
Em seguida estabelecer um paralelo com o quadro constitucional dos EUA e Africa do Sul, que têm sistemas políticos de matriz presidencialista.
E, por fim, observar a cronologia dos discursos sobre o Estado da Nação proferidos pelo Presidente da República e pelo presidente do maior partido da oposição desde 2016 até ao momento.
Em Angola, a Constituição consagra, nos seus artigos 118.º e 119.º alínea b), o discurso sobre o Estado da Nação como uma competência exclusiva do Presidente da República, que o dirige anualmente à Assembleia Nacional.
Este discurso é visto como um acto político e institucional do Chefe de Estado, que é também Chefe do Executivo.
Aos partidos políticos, coligações de partidos políticos e aos grupos de cidadão eleitores reserva-se o direito de antena, de resposta e de réplica política, consagrado no artigo 45.º, mas é importante deixar claro que este é um direito circunstancial aplicável apenas em contextos de campanha eleitoral e de debate público sobre assuntos de interesse nacional.
Evidentemente não estamos em época de campanha, mas o discurso sobre o Estado da Nação se enquadra no conceito de debate público sobre assuntos de interesse nacional porque diz respeito a todos cidadãos e estimula o debate público.
Nos Estados Unidos, o discurso sobre “o estado da União” é uma obrigação constitucional do Presidente, que deve informar periodicamente o Congresso sobre a situação do país, conforme previsto no artigo II secção 3 da Constituição dos Estados Unidos da América.
Este discurso é visto como um acto político e comunicacional do chefe de Estado, que é também chefe do Executivo.
O direito de resposta ou réplica política dos partidos políticos não está previsto na Constituição, mas é uma prática institucionalizada desde 1966, em que o partido que não controla a Casa Branca designa um representante para fazer um discurso após o do Presidente.
A relação entre estes discursos é geralmente de contraste e de crítica, havendo pouca margem para o diálogo entre os partidos.
Na África do Sul, o discurso sobre o estado da nação é uma prerrogativa constitucional do Presidente, que deve igualmente dirigir anualmente uma mensagem ao Parlamento sobre as prioridades e os planos do Governo, conforme previsto no artigo 84.º alínea d) da Constituição da República da Africa do Sul.
Este é visto como uma acto político programático do chefe de Estado, que é também o chefe do Executivo.
Ao passo que o direito de resposta ou réplica política dos partidos políticos está previsto no Regimento Interno do Parlamento, que estabelece um debate sobre o discurso do Presidente nos dias seguintes ao seu pronunciamento.
Estas referências podem ser comparadas com Angola no tocante ao direito de réplica política ao discurso sobre o estado da nação.
É evidente que cada país tem as suas especificidades históricas, culturais e institucionais, pelo que não se pode fazer uma transposição mecânica ou acrítica dos seus modelos.
Importa não deixar de sublinhar nas referências acima que o acto de resposta ou réplica política dos partidos políticos aparecem como reação aos discursos do Presidente e não o contrário, ou seja, há uma precedência inflexível nos actos, primeiro o discurso do Presidente só depois as respostas ou réplicas dos partidos políticos.
No nosso contexto a dinâmica tem sido diferente. A frequência de vezes em que a liderança do maior partido da oposição em Angola antecipou-se intencionalmente a fazer discursos com títulos que referem ao “Estado da Nação” desde 2016 até ao momento, por exemplo, dá a entender uma «estratégia deliberada de antecipação, confronto e desafio» para obter algum destaque e manter a dianteira no jogo, negligenciando possíveis consequências destas acções na lógica da competição política.
Do ponto de vista jurídico, tendo em atenção a designação dos mesmos, este proceder leva a considerar os actos antecipatórios como ilegais/ilegítimos “de usurpação de competências”, na medida em que esta é uma competência exclusiva do PR, conforme previsto no artigo 118º e na alínea b) do 119º da CRA.
Deve-se reafirmar que o discurso sobre o Estado da Nação é um acto político e institucional do chefe de Estado, que é também chefe do Executivo, é visto ainda como manifestação da soberania nacional e da separação de poderes entre os órgãos de soberania.
E observa-se que do ponto de vista social, esta antecipação é um acto ambíguo que gera confusão e dá azo a polémica sobre quem tem a legitimidade para falar sobre o Estado da Nação e as políticas do Governo, mas, mais do que isso, pode ser uma fonte de desinformação ou de manipulação política.
Em democracias, o discurso sobre o estado da nação deve ser visto como um instrumento de prestação de contas e um estímulo ao diálogo democrático entre os actores políticos e o povo, deve permitir o pluralismo de ideias e a participação política.
No entanto, o respeito às leis é um quesito indispensável para participação harmoniosa e responsável de todos. Participação esta que se deseja dentro dos marcos estabelecidos pela Constituição e demais leis ordinárias.
A abordagem do Presidente João Lourenço, no seu último discurso sobre o Estado da Nação, foi construída com base nos mais recentes factos domésticos, na análise comparativa com outros sistemas políticos de matriz presidencialista e com atenção virada especialmente ao presente e ao futuro, o que é compreensível sendo um actor político formado em História.
Pesoulhe a cronologia dos discursos antecipados sobre o estado da nação e a iniciativa de destituição movida pela UNITA e a necessidade de repor a normalidade.
É natural que se queira evitar irritantes, por essa razão a chamada de atenção. Importa deixar claro que o que está implícito no debate não é o direito de resposta ou réplica política dos partidos políticos às acções do executivo, que refere o artigo 45.º, até porque é inerente à oposição criticar e fiscalizar as acções do executivo dentro dos moldes da lei.
O que está em questão é a competência em proferir discursos sobre o Estado da Nação, uma competência cabalmente atribuída ao Presidente da República enquanto Titular do Poder Executivo, Chefe de Estado, e, portanto, representante de todos os Angolanos.
É preciso respeitar a ordem dos procedimentos previstos na lei e não forçar factos. A lógica de precedência, implícita nos sistemas presidencialistas, sugere primeiro o discurso sobre o Estado da Nação a ser proferido pelo Presidente da República e só depois devem surgir as respostas ou réplicas políticas dos partidos políticos, coligações ou grupo de cidadãos. E não deve permanecer o contrário como tem ocorrido.
Dito isto, a liderança da UNITA e demais partidos e coligações da oposição continuam a gozar do seu direito de resposta e réplica política, constitucionalmente consagrado no 45.º.
Devem a esta altura refletir acerca do pronunciamento frio e pedagógico do PR João Lourenço e não reagir de forma grotesca e pouco ética; devem ainda alterar a designação e agendarem a posterior as respostas e réplicas ao discurso do Presidente da República à Assembleia Nacional sobre o Estado da Nação e não o fazer antecipadamente.
Esta polémica acaba por revelar a necessidade de definir com maior precisão e coerência, o conceito, o âmbito e os limites do direito de antena, de resposta e de réplica política, bem como a competência exclusiva do PR para dirigir anualmente uma mensagem à Assembleia Nacional sobre o Estado da Nação.
Isto ajudaria a harmonizar as leis constitucionais e a evitar eventuais conflitos ou ambiguidades jurídicas.
Revela ainda a necessidade de o Governo promover um diálogo aberto e construtivo com as forças políticas com assento parlamentar e os cidadãos, antes e depois do discurso anual do PR à Assembleia Nacional, mediante reuniões formais ou informais, consultas públicas ou sondagens.
Isto vai ajudar a fortalecer a democracia participativa e favorecer o consenso ou o compromisso entre os diferentes actores políticos e sociais. Conclui-se que apenas o PR tem a legitimidade, nos termos do 118.º e alínea b) do 119.º, para fazer um discurso sobre Estado da Nação, qualquer outro órgão ou entidade que assim proceder estará a margem do respaldo constitucional.
Isto não impossibilita os partidos políticos e coligações de evocar o artigo 45.º para responder as declarações do PR, posteriormente ao seu discurso e não antecipadamente como tem sido prática nos últimos anos, pois, por lógica só se responde ao que foi pronunciado, declarado ou perguntado.
Por: JULIÃO LOMENHA
*Cientista político e consultor