Recentemente, um amigo questionounos se pode herdar o número telefónico do seu falecido pai, – que, antes da morte, era cliente da operadora telefónica que atribuiu o respectivo número solicitando a emissão da 2.ª via do mesmo.
Determinado em solicitar a respectiva emissão, alegou possuir um conjunto de documentos, tais como certidão de habilitação de herdeiros, certidão de óbito, bilhete de identidade do falecido pai e o seu bilhete de identidade.
Esta questão, embora aparentemente óbvia, tem uma explicação subjacente. Pelo que, julgando constituir dúvida de muitos, a sua resposta levounos a elaborar o presente texto, pois é essencial que os cidadãos compreendam a natureza do seu relacionamento com os números telefónicos que utilizam, evitando interpretações iludidas sobre o uso dos mesmos.
Por conseguinte, nas linhas que se seguem, procuraremos, num primeiro momento, fazer o enquadramento legal da questão e, de seguida, esclarecemos, se é (ou não) possível “herdar” números telefónicos.
Por fim, faremos as recomendações que entendemos pertinentes atendendo o regime legal vigente. Para tal, dada a objectividade que se impõe na apreciação dos factos aqui referidos, teremos uma abordagem prática.
Pelo que, penitenciamo-nos, desde já, se eventualmente não alcançarmos o rigor desejado nos planos doutrinal e metodológico.
Adicionalmente, longe de ser um modelo esgotado de reflexão, o objectivo deste artigo é suscitar da comunidade académica e profissional um debate inclusivo, com todas as críticas que inerem aos seus autores, à luz do que se descortinar pertinente.
O artigo 2024.º do Decreto-Lei n.º 47 334, de 25 de Novembro de 1966, que aprova o Código Civil (Adiante “CC”) estabelece o conceito legal de sucessão como “(…) o chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida e a consequente devolução dos bens que a esta pertenciam”.
Mais adiante, se olharmos para o n.º 1 do artigo 2025.º do CC, veremos que este determina que “Não constituem objecto de sucessão as relações jurídicas que devam extinguir-se por morte do respectivo titular, em razão da sua natureza ou por força da lei.”
Assim sendo, as relações jurídicas que devem ser extintas por força da lei ou pela sua natureza, não podem ser objecto de sucessão. Significando, por isso, que estas não podem ser herdadas ou legadas.
Os números telefónicos são um recurso inerente ao mercado das comunicações eletrónicas e os critérios para a sua atribuição, recuperação, substituição e reserva em Angola são definidos por meio do Plano Nacional de Numeração (doravante, PNN), que é aprovado por meio de um Decreto Presidencial.
Ora, de acordo com o ponto 2.2.1 do PNN, aprovado pelo Decreto Presidencial n.º 181/19 de 28 de Maio, o Instituto Angolano das Comunicações (doravante, INACOM) é a entidade responsável por proceder à gestão integrada dos recursos de numeração, sendo-lhe reconhecida a competência para a atribuição primária dos números telefónicos aos serviços ou operadoras de telecomunicações.
Por sua vez, às operadoras de telecomunicações, como é o caso da Unitel, por exemplo, compete a atribuição secundária dos recursos numéricos aos seus clientes.
Sucede que, de acordo com o PNN, a atribuição secundária dos recursos numéricos não confere aos utilizadores dos números telefónicos o direito de posse sobre os mesmos, mas tão somente um direito de utilização, sendo que, o direito de utilização de uma atribuição secundária é intransmissível (Cfr. ponto. 2.2.1 do PNN). Esta distinção é crucial em razão das implicações práticas que dela podem surtir.
A posse, por um lado, configura o exercício de poderes inerentes à propriedade, independentemente de a pessoa ser ou não proprietária; enquanto o direito de utilização, sobre o qual versaremos a seguir, é condicionado pelo título constitutivo e pela lei. Acreditamos que o legislador utilizou o termo “posse”, por considerar que o titular dos recursos numéricos é o INACOM.
Pelo que, as operadoras de telecomunicações são, como vimos acima, ainda que de forma secundária, possuidoras.
Deste modo, se considerarmos o conceito de posse estabelecido pelo art. 1251.º do CC, como “(…) o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”, concluiremos que a operadora de telecomunicações exerce, efectivamente, posse sobre os recursos numéricos, porquanto exerce um poder de facto sobre os números telefónicos e actua como se de proprietária se tratasse, apesar de não o ser, – pois estes são detidos pelo INACOM – concedendo a sua utilização aos seus clientes.
Por outro lado, de acordo com o ponto 2.2.2 do PNN, “(…) o INACOM pode proceder à recuperação dos recursos de numeração anteriormente atribuídos, em caso de incumprimento por parte do titular; não utilização ou utilização não eficaz dos recursos atribuídos.”
Isto reforça o que dissemos acima, pois se o INACOM pode recuperar os recursos de numeração atribuídos, não podemos considerar o cliente da operadora proprietário do número telefónico, mas sim um utilizador.
Dando sequência ao que vínhamos dizendo, para todos os efeitos civis, pode- se concluir que a natureza jurídica do direito de utilização concedido por meio de uma atribuição secundária enquadra-se no domínio dos direitos reais de gozo, por se tratar de um direito de uso.
O n.º 1 do artigo 1484.º estabelece que o direito de uso/ utilização “consiste na faculdade de se servir de certa coisa alheia e haver os respectivos frutos, na medida das necessidades, quer do titular, quer da sua família.”
Daí que, embora o número seja facilmente associado a uma pessoa, o seu utilizador mantém um contrato com a operadora de telecomunicações para que o mesmo se mantenha activo.
Justificando-se, por isso, que o utilizador se sirva do mesmo na medida das suas necessidades. Todavia, os direitos de uso, fazendo um paralelismo com o presente contexto, extinguemse (i) por morte do usuário; (ii) chegado o termo do prazo por que o direito foi conferido, quando não seja vitalício; (iii) pelo seu não exercício durante vinte anos, qualquer que seja o motivo e (iv) pela renúncia (Cfr. artigo 1485.º conjugado com os artigos 1476.º e 2025.º).
Deste modo, não pode, para todos os efeitos do sobredito artigo 2025.º do CC, ser objecto de sucessão. Rapidamente podemos perceber que o direito de utilização do número telefónico concedido ao pai do nosso amigo pela operadora telefónica, não pode, deste modo, ser objecto de sucessão (herança ou legado), porque extinguiu-se com a sua morte. Por conseguinte, não pode este herdá-lo e, por conseguinte, ter legitimidade para solicitar a 2.ª via do referido número telefónico.
Diferente seria o caso de os utilizadores solicitarem a mudança de operadora de telecomunicações, mantendo o mesmo número telefónico (incluído no PNN). Este processo, conhecido por “portabilidade numérica”, é consagrado à luz do artigo 49.º do Decreto Presidencial n.º 225/11 de 15 de Agosto.
Trata-se de um caso diferente, não obstante implicar uma passagem de um número telefónico de uma operadora de telecomunicações para outra (embora sem alterar o utilizador). Contudo, isto é uma matéria digna de ser explorada num outro artigo que não o presente.
Por tudo quanto exposto neste breve excerto, salvo assinalável consideração em sentido contrário, concluímos o seguinte: 1.Os números telefónicos são recursos escassos – com um ciclo de vida que deve ser respeitado – e o processo de gestão dos mesmos é complexo; 2. O INACOM, enquanto entidade responsável proceder à gestão integrada dos recursos de numeração, tem competência para a atribuição primária dos números telefónicos aos operadores de telecomunicações; 3.
Aos operadores de telecomunicações é reconhecida competência para atribuição secundária dos números telefónicos aos seus clientes; 4. Os clientes das operadoras de telecomunicações adquirem um direito de utilização, que é intransmissível e extingue-se com a morte do seu titular.
5. Contudo, é possível que o cliente mude de operadora telefónica, mantendo o mesmo número telefónico. Adicionalmente, recomendamos o seguinte: a) Revisão periódica da legislação O PNN, foi concebido em 2019, num contexto pré-Direito Digital, totalmente diferente do actual, marcado pela afirmação do Direito Digital.
Pelo que, compreende-se que o trabalho empreendido naquela época cumpriu o seu propósito para aquele contexto. Entretanto, é crucial reconhecer que a rápida evolução tecnológica exige uma revisão contínua das disposições normativas, especialmente no que diz respeito aos recursos de numeração, que noutrora eram simples identificadores para comunicação e hoje adquiriram o estatuto de “activos digitais”, marcados pela assumpção de um papel central a vários níveis, que vão desde a autenticação da identidade, acesso a serviços bancários, plataformas de e-commerce a diversas outras aplicações digitais.
Tudo isto tem implicações significativas em termos de segurança, privacidade e propriedade, que não podem ser obscuradas, justificando-se, por isso, a necessidade de revisão da legislação de modo a permitir a transmissibilidade dos números telefónicos. b) Promoção de debates públicos sobre o assunto É preciso reconhecer o trabalho que vem sendo desenvolvido pelo INACOM.
Contudo, julgamos ser necessário apostar na promoção de debates públicos e consultas com os seus especialistas, a fim de assegurar o esclarecimento da população, na maioria das vezes, desconhecedora destas matérias, e obter um feedback que permita garantir a adequação da legislação à realidade digital.
Por: AMÍLCAR QUINTA, JR. & LEONEL SERAFIM
* Assistente-Estagiário de Direito das Obrigações da Faculdade de Direito da Universidade Católica de Angola (FD-UCAN). Colaborador no Centro de Investigação do Direito da FDUCAN. Licenciado em Direito pela FD-UCAN. ** Jurista e assessor. Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto