O ano de 2024 tem sido ensombrado pelo passamento físico de eminentes figuras da sociedade angolana. Sem desprimor para as demais, destacamos duas, o Professor Doutor França Van-Dúnem e, recentemente, Sua Eminência o Cardeal Dom Alexandre do Nascimento. No caso das duas figuras citadas, ambas ligadas à Universidade Católica de Angola (UCAN), esta instituição de ensino superior decretou, por despacho da Sua Magnífica Reitora, Luto Institucional.
A questão recorrente que, nos círculos de profissionais de cerimonial e protocolo, tem sido colocada é a de saber se a morte de uma eminente personalidade pode, igualmente, justificar a declaração de luto nacional.
A resposta é-nos dada pela Lei n.º 5/11, de 21 de Janeiro, sobre o Luto Nacional e Provincial. Na alínea a) do número 4 do artigo 5.º a citada Lei, é admitida a possibilidade de, excepcionalmente, ser decretado luto nacional “em caso de morte de determinada personalidade nacional ou estrangeira de elevado prestígio e reconhecida idoneidade.”
A lei acresce, ainda, que tal personalidade deve ter, em vida, “prestado serviços relevantes à causa da independência nacional, à paz, à unidade e a reconciliação nacional, à defesa da integridade territorial, bem como o desenvolvimento do país e da humanidade.”
Portanto, a lei não deixa qualquer dúvida sobre a referida possibilidade. Na prática do Estado angolano, já tivemos casos em que se assistiu à declaração do luto nos termos da alínea a) do número 4 do artigo 5.º da Lei que estamos a citar.
Tal aconteceu, para citar dois exemplos, aquando do passamento físico dos antigos Presidentes da África do Sul e de Cuba, Nelson Mandela e Fidel Castro, respectivamente. Significa que existe precedente, embora o mesmo diga respeito a personalidades estrangeiras.
Quais seriam os detalhes da declaração de luto de uma personalidade de elevado prestígio e reconhecida idoneidade? A alínea c) do artigo 6.º da Lei do Luto Nacional e Provincial estabelece que o luto nacional dessa personalidade terá a duração de um dia.
Assim, tendo sido declarado luto nacional, os procedimentos protocolares a serem observados são os que constam da alínea b) do Artigo 7.º. Referimo-nos à colocação da bandeira à meia haste e ao cancelamento de espectáculos e manifestações públicas, no dia do funeral.
Porém, temos de admitir que a referida lei é escassa na qualificação daquilo que se entende serem “serviços relevantes à causa da independência nacional, à paz, à unidade e a reconciliação nacional, à defesa da integridade territorial, bem como o desenvolvimento do país e da humanidade” prestados por uma dada eminente personalidade falecida.
Assim, caberá, ao intérprete da norma, ajuizar se um dado indivíduo satisfará ou não os requisitos de eminência, notoriedade e idoneidade previstos na alínea a) do número 4 do artigo 5.º da citada Lei do Luto Nacional e Provincial.
Trata-se, desde modo, de um exercício que deve ser feito casuisticamente. Assim sendo, tendo em conta tudo o que precede, é nosso entendimento não haver qualquer dúvida que o finado Dom Alexandre Cardeal do Nascimento, o primeiro e único Cardeal angolano, reúne todos os requisitos legais para que possa ser decretado luto nacional, nos termos da lei.
Os seus feitos notórios falam por si só. Para avivar a nossa memória colectiva, falaremos, a seguir, de alguns deles apenas. Dom Alexandre Cardeal do Nascimento foi uma figura proeminente da Igreja Católica, tendo desempenhado um papel fundamental no desenvolvimento social, cultural e religioso de Angola, especialmente durante e após o período colonial.
Nascido há 99 anos, o Cardeal Nascimento se destacou não apenas como um líder religioso, mas também como um acérrimo defensor dos direitos humanos e da justiça social. A sua dedicação à educação e ao ensino foi uma das marcas de seu ministério, onde buscou fortalecer a formação religiosa e académica dos seus compatriotas. Ele sempre valorizou a educação como um pilar fundamental para o desenvolvimento de Angola.
Em 1975, com a independência do país, Dom Alexandre foi nomeado Arcebispo de Luanda e, posteriormente, em 1991, elevado à dignidade cardinal pelo Papa João Paulo II.
Esta ascensão não só reconheceu seu trabalho na Igreja, mas também reforçou a sua influência na sociedade angolana. De um total de 235 cardeais existente no mundo, o Cardeal Nascimento era, até a sua morte, o Decano do Colégio Cardinalício. Importa referir que, daquele número global, 28 cardeais são oriundos de África.
A Nigéria é o país africano com o maior número de cardeais, isto é, 4 cardeais. Angola deixa, assim, de ter um cardeal, sendo que cada um dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) continua a ter um cardeal.
Na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), o Brasil lidera com 7 cardeais. Durante a devastadora Guerra Civil Angolana (1975-2002), Dom Alexandre destacou-se como um advogado da paz e reconciliação.
Ele não apenas denunciou a violência e os abusos cometidos durante o conflito, mas também trabalhou incansavelmente para promover o diálogo e a reconciliação nacionais, o que fez dele uma figura respeitada e admirada não apenas por católicos.
Sob a liderança do Cardeal Nascimento, a Igreja Católica estabeleceu inúmeras escolas e instituições de ensino superior, tendo promovido a formação de jovens angolanos em diversas áreas.
Ele, mais tarde, veio a tornar-se no primeiro Magno Chanceler da UCAN e, em 2019, o primeiro Doutor Honoris Causa daquela universidade. Dom Alexandre esteve, ainda, à frente de várias iniciativas de saúde, assistência social e ajuda humanitária, sobretudo junto das populações mais vulneráveis.
Portanto, o legado e a influência de Dom Alexandre Cardeal do Nascimento vai além do âmbito religioso e continuará a ressoar entre as novas gerações de angolanas e angolanos. Ele é, inegavelmente, um dos grandes líderes espirituais e sociais que Angola já teve.
Os seus feitos estabelecem uma conexão profunda com a luta por justiça, paz e dignidade do povo angolano. Por tudo isso, consideramos que sua eminência Dom Alexandre Cardeal do Nascimento é, indubitavelmente, uma personalidade de elevado prestígio e reconhecida idoneidade, com todas as consequências jurídico-protocolares daí resultantes.
*W. VERGUEIRO
Por: William Vergueiro*
[Membro da Associação de Profissionais de Cerimonial e Protocolo de Angola (APCPA) e Coordenador do Protocolo da Universidade Católica de Angola (PROTUCAN)].