Olho pela milésima vez para a folha em branco enquanto me debato com os milhares de temas sobre o que escrever. “O país não vai acabar” disse-me certa vez um amigo, hoje, sei que não. O país continua, os seus problemas também.
Então por que não consigo escrever sobre tema algum? Por que a folha continua em branco apesar das minhas inúmeras tentativas de fazer brotar uma reflexão útil e proveitosa? O problema talvez seja eu, que me sinto entorpecido, incapaz de dar um passo para frente.
É como se todos os temas se tivessem convertido num único: a minha mãe. Mas sobre isso não posso escrever. Tenho um compromisso com o jornal para cumprir.
Penso e repenso nos nossos infindáveis assuntos e nas múltiplas soluções que noutras alturas superabundavam a minha mente e nada… a folha continua em branco. Não me sai nada.
Não consigo ainda pensar no país, no seu povo, nas suas necessidades, nas políticas para as atender, nada. Apenas a mãe que partiu tão subitamente ocupa-me agora os pensamentos e os sentimentos.
Olho para a folha e é a minha mãe que vejo, de pé, atarefada como sempre, a destilar as suas ordens, a fazer planos, a orientar-me a vida. Sinto o telefone tocar e acredito que seja ela a querer saber como passámos a noite, para depois se alongar num terno sermão sobre como um filho não devia ficar tanto tempo sem telefonar à sua mãe.
E eu, inventando desculpas para tentar escapar, julgando-me adulto suficiente para fugir dos seus ralhetes, das suas repreensões, das suas correcções. Mas, e agora? Se tão adulto sou, por que me fazes tanta falta, hó minha minha mãe? Por que te quero de volta a guiar-me os passos, a dizer-me o que fazer, a ralhar-me pelos meus erros e desacertos? Em nada mais consigo pensar, sobraram apenas essas visões que me surgem volta e meia e a folha continua em branco, de uma brancura que reflecte uma mente em paralisia, sem capacidade de pensar, de criar, de produzir alguma coisa que vá para além da minha mãe.
Talvez a única coisa de que seria capaz de escrever era um texto a protestar tão rude golpe da vida, ou um que reclamasse desta dura vida que carregou sobre os ombros de minha mãe fardos tão pesados que a desgastaram e a empurraram para este fim trágico, talvez devesse escrever suplicando por uma terra natal que a concedesse mais uns anos de vida ao nosso lado.
Que me perdoem os leitores tão grande egoismo. Por isso, não escrevo. Minha mãe foi uma mulher anónima e os anónimos não merecem páginas de jornais.
Nem mesmo quando em vida se transformaram em verdadeiros heróis, vencendo os magros salários que volta e meia atrasavam, os preços que só subiam, a escassez de tudo ou quase tudo, as bichas nas lojas para conseguir um bocado de negócio, ou até mesmo a luta para matricular os filhos e darlhes um pouco de educação.
Sim, minha mãe venceu todas essas batalhas para deixar para essa sociedade filhos úteis e valorosos. Mas agora partiu, sem honras, nem glórias, como todos os heróis anónimos.
O país continua, devo pensar nos vivos. Sempre o fiz, mas veio novamente “essa nossa vida” a dar-me um golpe fatal e a deixar-me assim: inerte. Hoje, problema sou eu que me vou sentindo menos vivo do que ontem.
Sei (quem me dera que todos soubessem), o país não termina, vai terminando, a cada ente-querido, a cada amigo, a cada irmão angolano que perdemos ingloriamente.
Os nossos ente-queridos que partem levam consigo partes significativas de nós, das nossas vidas, levam consigo um pedaço do país que havia em nós. E de mim, talvez a minha mãe tenha levado consigo a minha capacidade de pensar, de reflectir, de sentir algo para além desta dor que arde viva dentro de mim.
Olho para essa folha que continua em branco, que me perdoem os leitores, talvez um dia, algo faça ressuscitar a minha capacidade de refletir. Enquanto isso, suplico que chegue breve o dia em que os nossos mortos compreendam porquê que morreram afinal, porque eu não compreendo e isso me paralisa.
Por: Sérgio Fernandes
*Escritor