Um baú de madeira e revestido em latão reluzente ou em napa completava o mobiliário de quarto principal da casa de pau a pique da minha avó. De lá saiam os garbosos panos e quimonos para as suas vestes de bessangana. As cores das estampas dos panos escolhidos para determinado dia transmitiam- nos de antemão o seu estado de ânimo ao acordar e o tipo de compromissos que tomariam a sua agenda.
POR: Paulo Gomes
Nas idas ao mercado de São Paulo, onde tinha a sua bancada de venda de peixe, optava por trajes sóbrios, com panos leves para suportar o calor de Luanda e disfarçar bem qualquer nódoa acidentalmente acolhida no contacto com os produtos que comercializava. Para os momentos especiais, além das cores e motivos estampados, sobressaia a qualidade dos tecidos. Não podia ser qualquer tecido. Eram sempre os melhores e mais vistosos. Ficavam largos meses dentro daquele baú com doses altas de naftalina a protege-los do ataque cáustico das baratas e aguardar pela melhor ocasião para serem exibidos.
Arrepiava-me a espinha quando a minha avó surgisse vestida de panos vermelhos. Eram épocas para dialogar com os espíritos, entrar em transe para desmistificar um problema pontual no seio da família, para supostamente proteger os seus dos maus agoiros ou ainda para adivinhar os porquês dos males que debilitavam a sua comunidade. Eram momentos de reunião do seu grupo de xinguilamentos. Ocasiões enfadadas de temor para a maioria das crianças, dada a imprevisibilidade das transmigrações que se apossavam das escolhidas para invocar os calundus. Um ambiente cultural e também sobrenatural mas, em certas ocasiões, violento e medonho.
Entre os panos da minha avó, os de estampas alegres sempre desencadearam um animado assédio dos netos nas épocas de carnaval. Recriar as indumentárias típicas dos Axiluandas era a tendência dos afoitos da família para mergulhar no entrudo. Mas, quem levasse uma peça de pano ou outro adereço tinha a responsabilidade de devolvê-la ilesa. De outro modo, jamais voltaria a beneficiar da sua generosidade. Poucas vezes ela teve aborrecimentos porque o seu património emblemático é geralmente bem tratado e regressa incólume ao seu velho baú de madeira exalando o cheiro forte à naftalina. Por ser aficcionada do carnaval, participava da montagem dos figurinos, ensinava os passos de dança e cantarolava os refrões de velhas e novas canções do seu grupo carnavalesco.
Transmitia valores e alicerçava a manutenção da sua dimensão cultural sem necessidade de orçamentos ou dotações financeiras. Os panos da minha avó estarão com certeza novamente a desfilar para o carnaval de Luanda. Ela já não tem a força física para acompanhar a sua “dimba” mas os seus panos engrossarão a cortina de foliões desta jornada cultural. Sobretudo, aquele núcleo que não está apegado aos cifrões e não tem a ambição desmedida pelos prémios. Outro dia fiquei estarrecido ao ouvir a comandante do União Kiela dizer que ainda faltam 15 milhões de Kwanzas para completar os adereços necessários para a sua participação no carnaval deste ano. Na tentativa de angariar este montante bateu as portas da Sonangol e do Banco Nacional de Angola mas, felizmente, não foi bem sucedida.
Fiquei também atordoado quando o secretário-geral da ANASO veio a público reclamar a falta de verbas para realização de testes e distribuição de preservativos durante o desfile do carnaval. Parece terem constatado que o pecado carnal atinge uma escala vertiginosa durante o evento e sobe consideravelmente o risco de contágio por HIV entre os foliões. Não consegui entender para que baú estavam estas duas personalidades a olhar no momento em que soltaram as suas choradeiras. Existirá talvez um saco cheio de rebuçados para adocicar a boca dos mais arrojados ainda que para a maioria o apelo seja no sentido de apertar os cintos ou recorrer aos panos guardados nos velhos baús das nossas avós, onde o que sai volta inteiro e dá lucro porque cristaliza a moralidade.