Convidada para discursar no Fórum Humboldt, em ocasião da cerimónia de abertura do Museu de Arte Asiática (Museum fur Asiatische Kunst, em alemão), em Berlin, Alemanha, a proeminente escritora Nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie chamou a atenção dos presentes para uma verdade pouco abordada e muitas vezes ignorada que é o facto de que muitas das colecções de arte em posse dos governos alemão, britânico, belga e outras potências imperialistas europeias e expostas nos museus do “velho continente” não foram adquiridas de forma legal.
Muitas destas peças foram saqueadas durante os períodos de ocupação dos territórios africanos, asiáticos e latino-americanos.
Percebe-se o paradoxo desta atitude aviltante quando nos recordamos que por muito tempo foi-nos incutida a ideia de que devíamos nos europeizar porque não havia nada nas comunidades africanas digno de ser aprendido ou estudado, facto de que a aclamada escritora se faz valer para exortar os governos acima referidos a devolverem as obras de arte injustamente adquiridas aos governos dos seus respectivos países de origem.
O resultado destas inverdades a nós ditas vezes sem conta até passarmos a nelas acreditar é o distanciamento que se verifica entre o africano hodierno e o conhecimento que ele possui a respeito de si mesmo.
Há uma ponte que ainda clama por reconstrução entre o africano dos finais do século XV e o africano pós-colonial. Há um reencontro que ainda não foi documentado pelas câmeras da Nação Coragem da história de África.
Este conhecimento ainda é, entretanto, sondável, alcançável e penetrável, porém, não há grande interesse a tal, pois o jeito de ser e estar das europas, américas e ásias chega a ser mais sedutor, atrativo e apelativo para a nossa juventude.
Uma das maiores consequências destes fenómenos reside no facto de que perdemos todos os dias a oportunidade de acedermos a todo um rico acervo antropológico identitário deixado pelos ancestrais, como é o caso dos nossos provérbios.
Os provérbios são, nas palavras de Chinue Achebe, “as especiarias com que os africanos temperam a vida”, e foi através de “O Homem que Plantava Aves” de Gociante Patissa, autor angolano e Ovimbundu confesso, que tive contacto com muitos provérbios nossos, elementos que o escritor intencionalmente adiciona nas suas histórias de modos a ensinar e estimular interesse por parte do leitor em beber mais desta saborosa via de transmissão de conhecimento, pensamentos e valores.
Uma verdade irrefragável a respeito dos provérbios africanos é que eles transmitem, por um lado, uma pujante pletora de sabedoria e, por outro, a sensação de que ela está a ser passada de um ancião para um recém iniciado na escola da vida.
Ombweti yateka é uma expressão proverbial usada nas comunidades Ovimbundu para manifestar um sentimento de perda, mas não uma perda como qualquer outra. Trata-se de uma perda específica, crítica, preocupante e irreparável.
Ombweti yateka usa-se para referir que a bengala partiu-se. Este objecto que serve de apoio e sustentabilidade para que o ancião já senil possa, ainda que com as costas envergadas, caminhar com maior facilidade.
A bengala, entretanto, não é literal. Ela é símbolo representativo de uma figura cuja existência em nossa vida é sinónimo de cidadela.
A expressão pode ser ouvida na música “Valentim Amões” de Justino Handanga, onde o artista lamenta a morte do empresário cujo nome deu título à obra.
Valentim Amões era um empresário solidário, altruísta e preocupado com as condições de vida dos músicos do Huambo.
Amões representava uma bengala para que muitos pudessem caminhar e viver mais confortavelmente, e a sua morte foi, para estas pessoas, razão suficiente para exclamar “ombweti yateka”. Todos nós temos em nossas vidas uma figura que representa para nós uma bengala.
São na maior parte das vezes os nossos pais, avós e tios, mas pode também ser o caso de alguém cuja presença nos inspire e transmita confiança, como um líder político ou religioso, pessoas cuja presença e existência são a principal razão para que uma causa, projecto ou missão se mantenham em pé e uma vez mortos, tudo automaticamente colapsa, ou simplesmente deixa de ser o mesmo.
Penso, nesse sentido, no episódio bíblico da morte de Jesus Cristo, e como em consequência dela os discípulos se dispersam, perdendo o brio e o senso de propósito, pois Cristo, a sua bengala, se havia partido.
Para sorte deles, a sua bengala reestruturouse, ajuntou-os e deu-lhes outra vez ânimo para irem ao mundo e cumprirem a missão que os incumbiu, na promessa de que estaria sempre com eles até ao fim dos tempos.
Quem dera as nossas bengalas não se partissem. Quem dera pudessem também se reestruturar. Quem dera não tivéssemos razões para invocar “ombweti yateka”.
Por: EDUARDO PAPELO