Todo o guitarrista submete o seu instrumento musical a uma espécie de cirurgia antes de começar a tocá-lo: a cirurgia da afinação.
Este processo é imprescindível caso queiramos que o instrumento destile notas puras e sem mácula. Ao afinarmos um instrumento, nós o ralhamos, isto porque tanto o afinar quanto o ralhar comungam da genuína intenção de ver a melhoria e aprimoramento do objecto afinado ou ralhado.
Afina-se um instrumento musical porque sabe-se que ele pode soar melhor. Ralha-se uma pessoa porque se tem consciência do seu potencial e de que ela pode ser e fazer melhor.
Só deixamos de ralhar alguém quando este mata em nós qualquer esperança de que pode vir a melhorar. Só deixamos de afinar alguém quando percebemos que este alguém já não tem solução.
Os médicos só se escusam de submeter um paciente a um procedimento cirúrgico quando têm a certeza de que a doença já se encontra em um estado demasiado avançado e o quadro é irreversível.
Ouve-se muito, sobre a vida conjugal, por exemplo, que quando o marido chega a casa à altas horas e a mulher já não perde o sono por causa disso; quando tem marca de batom ou cheiro do perfume de outra mulher colado à sua roupa e ela não diz nada; quando encontra chamadas ou mensagens comprometedoras com outras mulheres no seu telefone e não mais faz escândalo; quando o parceiro não come a refeição preparada com amor e carinho porque chega sempre repleto da rua e ela não mais implica com isso; é nesses momentos, quando a mulher deixa de ralhar o marido em função das suas constantes desafinações, que ele mais deve se preocupar.
Em certa entrevista, Jordan Peterson, Professor, Escritor e Psicólogo Clínico, quando questionado sobre qual o método que usa para manter-se fiel a si mesmo e as suas origens e não deixar-se corromper pela fama, prestígio e reconhecimento, alerta instantaneamente que a tendência é real e o perigo sempre iminente em função do facto de que quando se atinge um considerável nível de fama, as pessoas tornam-se mais propensas a concordar com tudo o que dizes, a fazer todas as tuas vontades, a rir-se de todas as tuas piadas e o tapete vermelho está sempre estendido para ti onde quer que vás.
Talvez te perguntes: isto não é bom? A resposta do Professor é: não quando o tapete vermelho está estendido em direção ao inferno.
O segredo, diz o Psicólogo, é garantir que manténs à tua volta pessoas com a capacidade e destemor de te dizer: não! Pessoas capazes de chamar-te à razão quando necessário, aconselhar-te, orientar-te e corrigir-te. Em outras palavras, pessoas que tenham a coragem e capacidade de te ralhar.
Não sei se em razão da idade, da personalidade ou do facto de que vivo em África, já me são imputadas certas exigências. A minha mãe exige netos, familiares e conhecidos constantemente perguntam por uma cunhada que também desconheço. Entretanto, confesso que ocasionalmente penso naquela que será a minha eterna companheira da vida.
De todas as característicass que ela vier a ter, que a arte de saber ralhar faça parte delas, e que eu seja também, quando necessário, vítima dos seus ralhetes. Existe um provérbio bíblico que diz que o ferro com o ferro se aguça, e o homem afina-se no contacto com os outros. Tenho a plena certeza de que parte deste aguçar passa por alguns episódios de ralhetes mútuos.
Tenho aversão à ideia de ter uma parceira que concorde em todos os momentos com o que digo. De todas as características que ela vier a ter, que a capacidade de detectar e alertar-me sobre os meus pontos cegos faça parte delas.
Tendemos enquanto humanos, especialmente quanto mais velhos nos tornamos, a reagir mal aos ralhetes e admoestações, dificilmente acatamos conselhos, somos alérgicos a críticas.
É pena! Lembro-me de, certa vez, ter tocado uma das minhas algumas composições para uma amiga. É até hoje, segundo ela, das suas músicas favoritas.
No entanto, tal não aconteceria caso a Natasha, a minha querida guitarra, não se submetesse a afinação. É no mínimo mágico o que acontece quando nos afinamos ou nos permitimos ser afinados.
Instrumentos afinados emitem sons cristalinos e etêreos. Pessoas afinadas renovam a nossa esperança na humanidade.
Por: EDUARDO PAPELO