Em dias de maré baixa, cruzo o tempo partilhando verbos com o meu kamba Kaputu. Termos, como é de habitual, uma conversa aos sábados a fim de trazermos o relato da semana toda, a nossa conversa é sempre acompanhada de uma boa kisangwa.
Ele traz a kisangwa e eu responsabilizo-me pelo açúcar.
Nas nossas conversas, falamos de tudo e sem excepção de nada, desde a religião, política, ciência, cultura e o dia-dia do nosso museke (aqui conta-se tudo até as malambas da nossa vida) que, por nós, passou a ser chamado de “um ponto de olho”.
Hoje decidimos esquecer outros assuntos e começarmos com o nosso “um ponto de olho” que era sempre deixado ao fim da conversa e nem sempre raspávamos bem os korrololos que sobravam no fim.
Nasceram palavras na cabeça, delas surgiram imagens que apresentavam o estado psicológico que a sociedade vive hoje, como se vê na vontade de os jovens lutarem para abandonarem o país.
Abri a boca e soltei a língua: – então, diga-me, Kaputu, como está indo o teu consultório de Psicologia que abriste na esquina da rua? perguntei enquanto açucarava a Kisangwa e preparava a boca para sentir o sabor e a quantidade de açúcar.
deixa mbora, mano! Quase que não há cliente para ser consultado, o último cliente que foi a minha procura, pediu-me para fazer-lhe uma consulta de Kilapi e que poderia pagar assim que o salário caísse.
Tu esperas mesmo tantos clientes aqui no nosso museke conforme vês em filmes ou novelas ocidentais?
Mano, ainda não temos essa cultura.
Uma sociedade que vive no animismo, não te vai ir consultar.
Vê a vizinha Nzunzi, ontem tirou o sono de todos só porque sonhou mal, passou a noite toda a ofender-nos e nos tratar de bruxos e que não queremos ver o seu bem.
A outra vizinha, aquela mamã do grupo coral, daquela igreja que está aí quase ao campo, acordou hoje atacando o velho Kituxi alegando que era ele o gato que chorava durante a madrugada no seu tecto.
Mas aquilo foi disparate atrás de disparate, parece que não vai à igreja.
O meu puto tirou-se o ndondinho (arrancar a unha do dedo do pé por meio de uma pancada) na pedra onde se bateu e hoje não me cumprimentou alegando que fui eu quem lhe falou mal enquanto andava por ter comido a minha comida.
Já viste? Esses são os clientes para ti, mas como não têm essa cultura, quem paga são os vizinhos.
Ou, então, se pretendes ter clientes, deves trazer uma Psicologia muito contextualizada à nossa realidade, caso não, mano, não terás cliente aqui no museke. relatei enquanto saboreávamos a kisangwa.
Nem terminamos a nossa conversa, nem, se quer, terminamos a nossa saborosa kisangwa, ouvimos já gritos no bairro, uns, corriam para ir ver o que se passava, outros corriam para depois passar o dia a fazer a reportagem do assunto a quem não esteve presente.
Abandonamos os nossos copos de kisangwa, metemo-nos em corrida para ver o que se passava na casa do vizinho João por onde saía os gritos e onde todo mundo pretendia chegar.
Chegamos lá meio cansado devido à corrida, decidimos, para não estar além da situação, saber o que se passava.
Fomos todos surpreendidos pelo relato que a tia Madalena nos passou sobre o seu esposo João. -família, me ouvem só!!! Mas que tipo de marido é esse?
Ele gostava sempre de ir fazer as compras do jantar ou do almoço na praça ou quando eu vou, ele é que faz as contas de tudo e o troco tenho de lhe devolver, nem consigo comprar uma blusa ou um bom colam requentado devido a este hábito dele.
Reunimos a família dele e a minha e todos me deram razão, então, aquilo passou.
Nestes dias ele ganhou um novo hábito de controlar na panela.
Hoje ele matou a galinha que estava em casa e controlou todas as metades que eu metia na panela, chegou na hora de comer, está a me perguntar onde está o rabo da galinha para ele comer e o porquê de eu não ter metido na tigela dele.
Assim que disse que fui eu quem comeu, começou a me bater, dizendo que o rabo da galinha é a parte dele favorito porque é doce.
Os tumultos e sorrisos começaram a sair dos que estavam presentes e a personalidade que o kota João criara sobre si, foi tudo à água-baixo.
Coitado do mais velho perdeu a rede e nem acreditou que as poderosas meninas do mundinho, onde fazia os baixos, estavam bem atentas a ouvir o discurso da sua esposa.
Depois de acalmarmos os ânimos do casal, eu e o Kaputo voltamos ao meu quintal a fim de darmos sequência da nossa conversa, para o outro azar nosso, encontramos o puto bebeu toda kisangwa com os seus kambas.
Olhei para o Kaputo, já todo frustrado devido ao sumiço da kisangwa, disse-lhe: -wi, vou ajudar-te a fortalecer o teu consultório, com essa maka no museke, todos nós precisamos de um psicólogo.
Por: KHILSON KHALUNGA