Há um bom tempo que o meu eu penetrou em mim para ver se tenho algum defeito ou alguma qualidade à esquerda.
É que os meus pés, volvida alguma experiência, têm o péssimo hábito de gravarem o cheiro da areia que pisam.
Não sei se sucede com os outros, mas os meus olhos, ainda que apequenados pela vontade de serem abertos, vislumbram o que está no horizonte.
Meus lábios, que nunca foram túmulo, não escondem a recordação do espanto. Então, quando estou à beira de uma voz, como costuma a dizer-me a minha mãe, com a sua filosofia que aprendeu longe da escola, a pergunta gera o conhecimento, perguntar sempre pode ser sinal de memória para a vida.
Não sei vocês, mas eu sempre penso que a arte pode estar não só no que se diz, mas pela forma como, sem dar créditos à gramática, as pessoas contam o que vem das suas almas.
Sob esta máxima, o meu rabo está numa motorizada KTM, uma de cor que se mistura no preto azulado.
Que me lancem a primeira estrofe da culpa os puros de memória! Quem, com a bolacha aberta, a boca pronta, a fome aos pulos, nesta correia, consegue observar a data de validade da comida empacotada? «Doutor, veja ainda: essa gaja nome dela é MINGA. Não sei.
O marido dela é conhecido.
Um kota que trabalha no CATOCA.
Estamos mal, mano. O mundo acabou mesmo já.» Na minha mente, a pergunta gira em torno do facto de que seja a Minga que conhecemos no bairro.
Se for ela, não vejo como ser aquela cujo marido trabalha na mina.
Porque Minga que é Minga, a bonita do bairro, mas um pouco burra, é dama de um kota que labuta na Educação.
Como me ensinaram a treinar o silêncio, fico imóvel.
O homem segue, depois que eu pensei que sou doutor, conclusão minha, por estar a usar óculos.
É que, por aqui, já me deram muitos doutoramentos por usar óculos, pior com um fato bem engomado. «Sim, mano» — digo-lhe em falso, como se eu estivesse atento. «Yea, veja só. Um gajo, assim mesmo, já destrocou uma parte do kumbu do boss, dei àquela gaja uns trocos…» «E o que ela deu, mano?» — perguntei-lhe, como se eu fosse inocente.
Sorriu longamente. Foi como se me tivesse dito “mas ó mano, imagina lá o que ela me deu, acho que já sabes!” O homem ficou mudo.
Depois, contou um monte de cenas que, como podem ver, não temos muito tempo para narrar… quando tentei dar corpo à minha muda voz, como quem andou a afiar a faca e, agora, vai esquartejar a carne pedaço a pedaço, o meu esqueleto já era como um flutuante nas águas do meu destino.
Que pena! Então, pensei: os taxistas não são exímios cronistas? Não conhecem caminhos sem uma aparente saída?
Não dominam segredos volumosos? Neste mar de aventuras, não se anda (algures) a contar tudo, de boca lavada.. Às vezes, lá no fundo do poço, contamos o mal a um parente a quem o fizemos. Ou pedimos, na aflição narrativa, ajuda ao diabo.
A bem da verdade, no plano físico e real, o nosso pequeno mundo é uma mátria de cronistas que tiraram algumas férias básicas.
Alguém saudável, com o lápis da lucidez apontado ao seu cérebro, faz culto ao silêncio tumular, tendo os seus pés fixos nessa terra?
Por: SALVADOR XIMBULIKHA