E ntre as pessoas, há os que nascem em um país e nunca mais deixam de pertencer nestes, e estes são a maioria.
Há ainda os que nascem em um, mas passam a pertencer noutros, porque é com estes outros que mais se identificam ao longo da vida.
É neste último grupo que pertence José Vieira.
Nascido em Portugal e apesar de ser Angola colónia portuguesa na época, veio à Angola quando criança e se tornou cidadão angolano pela sua participação na luta da independência.
Tomou, inclusive, Luanda como parte do seu nome e passou a ser Luandino. Luandino quis verdadeiramente ser angolano e achou fundamental aprender o quimbundo.
Aprendeu tanto que deixou estas marcas nos seus vários contos e romances.
No entanto, conhece tão bem o português que chega a complicar a vida do leitor menos culto e do menos atento. Conhece-o e brinca com ele até ao ponto de parecer ser um egoísta.
Luandino não escreve no português de Portugal quer ser Óscar Ribas e não Eça de Queiroz – e por isso tende a ser egoista.
Tenta, assim, recriar a sua língua na língua que falavam os luandenses dos musseques: suprime os pronomes ou, colocando depois do verbo numa conjugação pronominal reflexa, ignora as partículas atrativas.
Quando os usa, usa-os às vezes com exagero: “Menina t´alegra-se”; aplica locuções verbais inapropriadas; faz, regularmente, o uso dos discursos directo e indirecto livre confundindo a voz do narrador com a dos personagens; constantemente personifica os elementos da natureza até as casas e as ruas: por isso que as cubatas se despem, a areia chora, o sol rasga, o vento toca música e as árvores dikanzam; é frequente o mau uso das conjunções; usa a vírgula como e quando lhe apetece; erra de propósito na conjugação, não havendo concordância entre a pessoa e a flexão verbal, e troca regularmente a ordem dos elementos da frase: “e como assim”, na vez de “e assim como”, por exemplo. São, enfim, vários os recursos que Luandino utiliza para inventar a sua própria língua.
Ele conhece a língua e até demais.
Até ao ponto de saber onde a pode deturpar.
Quando são os personagens mais cultos que falam, ele escreve no português culto.
Mas quando é ele mesmo, o narrador, ou os personagens dos musseques, Luandino escreve no português do bairro.
A sua literatura é o resultado do esforço que faz para ser o mais luandense possível.
Para Luandino, a voz do narrador é a voz do povo.
E quando o povo é inculto, o narrador tem de o ser igualmente.
Ocorre-nos apenas uma conclusão: Luandino não queria escrever no português de Portugal, queria definitivamente cortar os laços com a terra dos seus pais, a terra que o viu nascer. Mas é Luandino também um escritor original.
Escreveu sobre prisões quando esteve preso.
Disto surgiu, inclusive, o romance João Vêncio: os seus amores, que escreveu enquanto ouvia todas as experiências com mulheres que o seu colega de prisão lhe contava.
Em Vidas Novas, Luandino reflete seres tristes e revoltados: Dina perde os pais quando criança e é forçada a se tornar prostituta pela madrinha que lhe cuidou, Cardoso Kamukolo, apesar de se conformar com os status quo, sofre com a insastifação das necessidades materiais e tem ainda a esperança de um dia o branco lhe aumentar o salário para poder colocar o filho que muito estima na escola, Nela, filha de pai português, apaixona-se por um revolucionário e começa aos poucos a revoltar-se com a situação que se vive, quando passa a conhecer como é a vida das mães e esposas que visitam familiares presos pela PIDE.
Luandino personifica a natureza não porque simplesmente se sente satisfeito em exagerar no uso das figuras de linguagem, mas porque é assim mesmo que os africanos vêm a natureza, como parte de si mesmos e elementos que interferem na sua vida: choram, falam e cantam, para que tudo em volta deia mais vida à vida que os homens vivem.
A ambiência não se aparta do que sentem os personagens.
No conto sobre o sapateiro Cardoso Kamukolo, Luandino começa com um anúncio profético: “se não matarem todos os monandengues da nossa terra…” que era uma expressão da fidelidade à literatura da época, a literatura da mensagem, quando os escritores, partes fundamental do processo revolucionário, sonhavam com uma Angola livre e justa para os negros donos da terra.
Escreveu: “As noites calmas dos tempos novos em que as pessoas ouvem mesmo o dormir de gato dos motores eléctricos das fábricas a chegar no vento, enchendo os jardins de suas casas com música nova, ou vêem a lua grande e bonita acender o candeeiro dela por cima das lavras de milho grande, mais que um homem, a mandioca a crescer verde como nunca foi…” enfim, chegou a idenpendência mas estes tempos não chegaram, a realidade é outra e o escritor vive agora na sua terra natal, como um cidadão comum. Aliás, por quê negou Luandino Viera o prémio Camões?
Por: Ismael Chipululo