Não falar do autor parece impossível, mas prometemos não fazer a biografia ofuscar a análise da obra em questão de Jesus Paulo Kambandando, membro do Movimento Lev Arte e mais tarde da Brigada Jovem da Literatura; além de escritor é também editor da Kapa Edições.
A sua poética é das mais apetecíveis dentre os mais novíssimos escritores benguelenses, não se assegura em sua estética uma ruptura com os autores anteriores nem com os mais mediatizados dos tempos actuais, antes (re) configura tecidos literários destes distintos autores, combinando ou até mesmo repetindo-os, dando um pouco de si, da sua originalidade à palavra poética e , assim, sugerindo-nos Aspas de Argila, o objecto de atenção desta mais nova apresentação com destaque na sua linguagem erótica muito frequente nos seus textos.
Trata-se de um poemário integral, a nível temático, uma vez que a obra faz uma abordagem de diferentes assuntos inerentes à nossa sociedade angolana. Com este trabalho, o escritor benguelense Kambandando torna-se numa demonstração do alcance da agristética, nesta época, pois apresenta várias características muito cultivadas pelos autores do Movimento Litteragris como o desmembramento, por exemplo, veja-se nos seguintes versos « flor entre espinhos/ resplandecente rosa/ em via ousada” (pág. 15)»; um aspecto também sugerido pelo analista literário Jorge Pimentel na edição de 31 de Julho do Jornal Cultura, passo a citar: (…) O autor fica pela simpatia e afinidade em relação à agristética, pois não se entrega como Narciso (…) Não se assume completamente agriscultor, mantendo o título no início do texto, não no final como é característico no Movimento Litteragris.».
A poética de Jesus Paulo Kambandando, em Aspas de Argila, alude, frequentemente, por intermédio do artifício estético-literário, desmembramento, o nome Hélder Simbad, fazendo menção da obra premiada desse autor, Enviesada Rosa, um poemário marcado pelo erotismo.
Será também por esta razão que o escritor benguelense nos traz “ Aspas de Argila” com uma face que reflecte a erotização da palavra poética? Aspas de Argila espelha a estética do litteragris; a meu ver, provavelmente, Kambandando é dos poetas fora da cidade capital, não sendo membro desse movimento, que melhor representa o modo de trabalhar a palavra poética do litteragris.
Esta continuidade estética não é decerto má, entretanto é necessário perceber que o fenómeno literário é caracterizado pela sua dinamicidade e , por isso, é importante que entre os novos cultores da palavra haja inovações estéticas que tragam estilos novos e , consequentemente, fenómenos literários novos e evitar repetições estéticas que nos fazem estudar o mesmo por muito tempo e é sobre o fenómeno de escrever o mesmo que o escritor Simbad admitiu na formação de escrita criativa e crítica literária da AJESUL que por esses tempos andámos em ciclo, não há grandes novidades na nossa literatura actual. Mas disto falaremos, certamente, nas próximas aparições, por agora, é a erotização da palavra poética que mais nos interessa.
A concretização ,na poesia, da expressão dos desejos sexuais ou da alusão a elementos corporais libidinosos, eróticos e sensualizantes é o que chamamos de erotização da palavra poética, um recurso usado desde a poesia lírica grega.
Deste modo, enganase quem pensa que se trata de um fenómeno novo, no entanto insta saber que a erotização não se reduz simplesmente à menção de elementos corporais libidinosos, antes pode estar ligada a diferentes recursos estilísticos que podem simbolizar tais elementos e causam no leitor sensações que o levam reflectir sobre a sexualidade.
Sobre isto, na página 16 pode-se ler no poema “Completas” o seguinte “ Eu batuqueiro/ entre fogos e cultos/ batuco nádegas/ pá,pá,pá…”, vê-se aqui além do uso da expressão “nádegas” , uma parte do corpo associado a uma zona erógena, o recurso à onomatopeia para imitar sons da batucada que metaforizam sons produzidos no momento da intimidade.
A erotização é a transformação de um assunto ou actividade normalmente desprovida de carga erótica em fonte de prazer sexual (Infopédia.pt), ela consiste no uso de uma linguagem excitante capaz de despertar desejos ao receptor, o erotismo cultua o corpo (masculino e feminino) fazendo uma espécie de retrato sexual do íntimo.
No poema “Avenida D, 4”, conforme o título sugere, há uma comparação abreviada entre o corpo feminino e a avenida no seu sentido real; o título D, 4 é deveras muito sugestivo, na medida em que nos pode levar a entendê-lo como uma referência à posição sexual “ D4”, outrossim o uso de palavras ao longo do poemas muito ligadas às zonas erógenas intensificam ainda mais o processo de erotização da palavra poética: língua/andando/sobre a boca/ do deus eu/ ao galgar o céu/ corpo de argila.
O mesmo pode-se ler na terceira estrofe do poema “ Mar de Mel”, leia: Adoro o beijo/turistar a língua (no mar)/remar com as mãos/o cimo do monte Sinai/até a origem selvagem/do mal criado pecado/ d´Adão e Eva.
Há uma alusão ao momento íntimo de prazer, não só através das palavras língua, beijo, mãos, mas sobretudo por intermédio da expressão “ no mar” o que demonstra o cuidado com a expressão do indizível, do imoral (Tchacupomba, Jornal de Angola, edição 20/10/24), visto que com a palavra “ mar” o eu-lírico quer nos remeter ao genital feminino.
Segundo Ceia (2009) « a Literatura Erótica inclui toda literatura licenciosa dirigida para a libertação do desejo sexual ou do amor sensual, independentemente, do grau de licenciosidade (…) », é uma manifestação da sexualidade e está presente em diferentes textos do poemário Aspas de Argila.
No poema “ Operação Resgate” a erotização é evidente e torna-se admirável como o sujeito poético consegue ser tão evidente relativamente ao seu objecto de atenção sem cair no hiperbolismo, no imoral e no erotismo barato que reduz a palavra poética a meros disparates que não passam de pornografia verbal.
Atente-se em excerto deste poema: Ei-me toda,/ apalpa-me aqui/tanda/tanga/e as mangas…/atinja-me o orgasmo/com pólvoras que exalam impunidade/ beija-me ou pera (minha)acção/resgate/teu chicote, de bom dia/apanhar/namorar em nossas esquinar/beijo nas bolas chefe.
O sujeito poético pertence ao campo semântico do desejo, da vontade íntima e o demonstra por via do uso de verbos sensitivos como atingir, beijar, apalpar ( tacto), um sentido muito usado na relação sexual, além do uso de expressões como bolas, chicote, orgasmo, tanga ou ainda revela-se com o demembramento que faz um duplo sentido com o substantivo operação que faz o título do poema, “ ou pera” tornando possível entender o lexema “ pera” como substantivo devido ao pronome possessivo “ minha” no texto entre parênteses quer como forma verbal “ de perar” palavra muito usada na gíria angolana-benguelense para remeter ao acto sexual.
Entre os erotismo com alguma técnica e aqueles sem grande técnica – como na terceira estrofe do segundo verso em “ Mal dita floresta” /a ejacular/(des) encanto ou em em “ Laudes” no segundo verso da terceira estrofe /espermaruvando/ -, a imitação dos poetas do literagris, o poeta Kambandando estreiou-se com uma obra que se distingue de muitas publicadas em solo benguelense e com riqueza estética considerável, embora não seja ela própria e característica do próprio autor o que passa por algum contraditório visto que nesta altura passa por impossível determinar a estética, a filosofia , a poética do nosso autor por possuir por enquanto apenas uma obra. Estou certo de que ainda se ouvirá muito falar do nome Jesus Paulo Kambandando no cenário literário angolano-benguelense.
Por: Fernando Tchacupomba