O muntu tem consciência de que a morte não é necessariamente o fim. Os ancestrais que realizaram boas obras enquanto vivos partem para junto de Ñgala Suku e servem de medianeiros dos seres viventes, pelo que merecem ser acarinhados e honrados de modos a que possam interceder a favor das preces e necessidades daqueles que ainda vivem sobre a terra.
Por outro lado, aqueles que em vida realizaram más obras e andaram por caminhos tortuosos, uma vez mortos, residem na morada dos espíritos malignos e são invocados por onganga (praticante de umbanda ou feitiço), de modos a perturbar a paz e tranquilidade dos seres viventes, provocando distúrbios, doenças, e todo o tipo de práticas ocultistas, obscuras e funestas.
É no local que os ovimbundu chamam de Etambo ou Akokoto que os ancestrais são venerados e a sua intermediação é solicitada em caso de estiagens prolongadas, tragédias ou outras situações que requeiram a sua intervenção.
À luz destes factos, percebe-se que, pelo bem e pelo mal, o africano não deixa de dialogar com os seus antepassados, daí a tamanha importância que se dá aos ancestrais no núcleo das suas comunidades.
Por esta razão, na obra “E se Obama fosse Africano”, o brilhante Mia Couto faz a seguinte observação: em África, os mortos não morrem. Basta uma evocação e eles emergem para o presente, que é o tempo vivo e o tempo dos viventes.
A minha avó foi nascida no Huambo, município do Mungo e, tal não foi a minha admiração quando ouvi o seu testemunho após a questionar sobre a veracidade destes relatos.
Ela confirmou-me que na sua aldeia não só os ancestrais eram venerados nos chamados Akokoto, como as preces a eles endereçadas acabavam sendo realmente atendidas, coisa que, até ao presente momento, ela também não consegue compreender nem explicar.
Na obra “Pequeno Dicionário Antroponímico Umbundu” de autoria do Dr.
Francisco Xavier Yambo, é relatada uma prática fascinante, característica dos povos Bantu que leva-nos a outra conclusão: em África, os mortos reencarnam e os vivos se replicam. Especializado em Ciências Antropológicas e Técnicas Documentais, o Dr.
Francisco Yambo empreendeu uma desafiante, porém frutífera e esclarecedora jornada pelo planalto central na intenção de estudar e documentar a antroponímia do povo ovimbundu, semelhante a dos demais povos Bantu espalhados por todo o continente africano.
A antroponímia diz respeito aos critérios, motivações e circunstâncias na atribuição de nomes no ceio de uma cultura, elementos que devem ser respeitados aquando da nomeação de um recém-nascido.
Dentre as várias motivações conducentes a atribuição de nomes a uma criança nas comunidades ovimbundu relatadas pelo antropólogo, salta particularmente à vista uma de singular importância para aquele povo.
Trata-se da intenção de trazer ao mundo dos vivos um familiar já falecido.
O modo como isto é feito pode ser explicado pela expressão umbundu “ociluke c’ange”. Ora, não se trata exatamente da exumação do corpo do falecido, devolvendo-se nele o fôlego da vida, somente Ñgala Suku é capaz de realizar tamanho prodígio.
Trata-se, pura e simplesmente, de atribuir o nome do familiar falecido ao recém-nascido na esperança de que este venha a adquirir s suas características e comportamentos.
O Dr. Yambo explica, inclusive, que a comunidade desempenha um papel psicológico no desenrolar deste processo, de forma a recriar, pelo menos de mente, a figura do ente falecido, sublinhando intencionalmente os momentos em que a criança reproduz comportamentos e gestos próprios do falecido, dizendo amiúde uns aos outros: “o fulano voltou através do filho do beltrano ou do sicrano.”. Em outras palavras, reencarnou. Ociluke c’ange também pode ser praticado a favor dos vivos.
Tratase de atribuir a criança o nome de um familiar, amigo ou conhecido que ainda vive, para que esta seja, como se diz, seu/sua xará. Em muitos casos, a criança acaba mesmo adquirindo, espelhando e reproduzindo certos hábitos, traços e características da sua ou do seu xará, permitindo assim, infere-se, que este se replique.
Daí que devamos ter bastante cuidado, atenção e sobriedade antes de atribuirmos o nome de alguém aos nossos filhos, sob pena de que estes corram o grande risco de reproduzirem os mesmos hábitos e comportamentos que os donos originais dos nomes.
Basta olharmos para a forte tendência que as pessoas têm em se tornarem a personificação dos nomes que as foram atribuídos.
Por exemplo, pessoas chamadas Infeliz têm uma grande tendência em atrair infelicidade para as suas vidas. Isto, ou atribuir ao seu nome a culpa pelos recorrentes episódios infelizes da vida.
Oxalá nenhum neonazista ganhe interesse em estudar filosofia e espiritualidade africana, não suceda que descubram que há séculos os africanos dominam a prática de fazer os mortos reencarnarem e usem dela para trazer ao mundo os espíritos de Hitler, Mussolini ou Idi Amin. Oxalá!
Por: EDUARDO PAPELO