Há semanas, deixamos aqui algumas linhas que giravam em torno da JMJ2023 realizada em Lisboa, onde, dentre várias coisas, destacamos a forma de ser e estar de Papa Francisco, sobretudo daquilo que diz, onde e quando.
Na mesma proporção que vemos surgir no mundo, líderes ditadores e extremistas, que não se importam com a quantidade de seres humanos que morrem todos os dias por culpa da irresponsabilidade destes, sobretudo crianças e jovens, vemos igualmente surgir líderes que remam contra esta corrente, irreverentes, que, cientes ou não das consequências posteriores, vão dando o peito às balas, mostrando-se inconformados com o sistema atroz que alguns querem implementar no globo.
A guerra na Ucrânia, os intermináveis conflitos no Médio Oriente, Norte de África, o terrorismo em Moçambique, na RDC e em várias outras latitudes, os recentes golpes de Estados no Mali e Níger, a iminência de uma escalada nuclear entre o Ocidente e a Rússia, bem como a tentativa de eliminação de minorias étnicas em várias partes do mundo, colocam-nos numa incerteza que deveria mexer com a sensibilidade de qualquer um de nós.
Francisco e Lula não estão a falar de coisas que desconhecemos. Não estão em Marte. São terrenos como todos nós. Talvez nos falte alguma coragem, oportunidade ou autoridade moral para dizer.
Ou então temos de tornar o livro ‘Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro’ de Edgar Morin, obrigatório em todas as escolas e organizações sociais, para que possamos compreender o verdadeiro significado de condição humana.
Na sua recente visita de Estado à China, Lula da Silva teceu declarações sobre a guerra na Ucrânia, que não agradaram os corredores da Casa Branca e de Bruxelas.
E, porque a sua paragem a seguir foi Lisboa, valeu-lhe até protestos nas ruas e insultos dentro da Assembleia da República, tendo provocado o azedar das relações dentro da casa das leis, e forçado Augusto Santos Silva a dizer CHEGA a André Ventura.
Emprestando as palavras do primeiro-ministro português António Costa, aquando do encerramento da JMJ2023, “não precisamos de ser católicos para se identificar com as palavras de Papa Francisco”, talvez o mesmo sirva para Lula da Silva, por mais bolsonaristas que queiramos ser.
A verdade mesmo é que, quer Lula da Silva, quer Papa Francisco, ambos dizem o que lhes vem à alma, um direito que provavelmente todos temos, enquanto terrenos e mortais.
O longo discurso de Lula, na Cimeira sobre o Ambiente em Paris, que visivelmente causou incómodos ao Presidente francês, partilhado e elogiado por milhares de pessoas nas redes sociais, acaba por ser uma das provas disso.
Depois da Cimeira dos BRICS, realizada recentemente na África do Sul, que admitiu seis novos membros e deixou sob a mesa a possibilidade da criação de uma moeda única, que pretende fazer face à hegemonia do dólar e do euro, Lula da Silva aproveitou a sua viagem ao Continente Berço da Humanidade, para cumprir a promessa de que a sua primeira viagem de Estado a África seria em Angola.
A chegada de Lula causou uma certa agitação social e mobilizou políticos e cidadãos cépticos da política, que queriam ouvir o que realmente aquele estadista poderia dizer. Fez-me recordar as agitadas vindas de Marcelo Rebelo de Sousa, embora fosse mais no sentido das selfies, sentadas em bares, restaurantes, conversas informais e dos mergulhos. Marcelo sempre deixou patente que não vem a Angola para comentar assuntos internos.
Se há uma coisa que une as três personalidades citadas até aqui, talvez seja a capacidade de quebrar protocolos e a ousadia de colocar de lado o discurso escrito, para falar de improviso.
Nos três momentos em que participou no primeiro dia da sua visita de dois dias a Angola, Lula ‘falou das coisas’ como sói dizer-se por aqui.
Chamou as coisas pelos próprios nomes e mandou recados para várias sensibilidades internas e internacionais, causando, provavelmente, alguns incómodos aos anfitriões. Até a imprensa presente não foi poupada das suas ironias.
De repente, vimo-nos envolvidos em debates políticos em vários canais de comunicação, até aqueles que haviam jurado não mais falar de política.
Podemos não gostar de Lula da Silva, das suas intervenções ou da sua forma de fazer e estar na política, mas devíamos concordar com ele, quando apresenta a proposta de repensar a dívida interminável que África tem com o FMI, cujos juros crescem de forma galopante, mesmo se sabendo que o continente não dispõe de capacidade financeira para pagar.
Quando diz que debaixo das árvores que compõem a floresta da Amazónia vivem milhares de pessoas que precisam de trabalhar, comer, ganhar as suas vidas e vestir roupas bonitas como qualquer um de nós gosta de fazer, está recordar-nos de coisas que todos sabemos e fingimos amnésia.
Os que estão a financiar o reflorestamento da Amazónia e de outras grandes florestas que compõem o pulmão da humanidade, não estão a fazer favor algum, estão a pagar uma dívida dos males que fizeram ao Planeta Terra, há 200 anos.
Pagar dívida nunca foi caridade, é obrigação. Lula não poderia ser mais feliz ao dizer isso.
Quem distorceu o mapa mundial, fazendo parecer que a Europa é maior que África, ampliando os Estados Unidos e reduzindo a América Latina, não agiu de forma inconsciente, pretendeu confundir a cabeça de milhares de pessoas.
Se gastar triliões de dólares em armas, em nome da bipolaridade, é mais racional do que colocar comida na mesa de milhares de seres humanos ou financiar países pobres para que possam gerar riqueza, então só tenho a felicitar a humanidade por ter inventado a nova racionalidade.
E se Lula nos visitasse todos os dias? Talvez pudesse dizer muito mais coisas, entre as que gostaríamos e as que não gostaríamos de ouvir.
Há quem acuse Lula de estar carregado de ódio, e de nos seus discursos estar sempre a lançar indirectas ao seu antecessor Jair Bolsonaro.
Verdade seja dita, ninguém anda aos beijinhos e abraços com o grupo que arquitectou o seu encarceramento, sem que para isso tenha dado provas de tal acto.
Mas, se a atitude de Bolsonaro de riscar África das políticas do Brasil, é digna de louvor, aplaudam, enquanto cruzo os meus braços. Lula veio a Angola dizer que vai devolver o Brasil onde nunca deveria ter saído.
O segundo país do mundo com a maior comunidade negra, não pode traçar as suas políticas, sem olhar para África.
Mais palavras, menos palavras, Lula acabou por delegar aos membros da sua comitiva, a responsabilidade de começarem a trabalhar já, nos preparativos da Cimeira Brasil – África, pelo menos é o que ficou implícito. Espero ter percebido mal.
Por: Carlos Maneco