As fichas venceram. Nos musseques ou nas cidades, são o novo negócio de sucesso. Essa nem os coaches financeiros previram.
Os jogos de apostas desportivas vão prosperando e se diversificando tão rapidamente sem dar sequer tempo para que os seus apostadores mais assíduos lhes conheçam o nome verdadeiro.
Oficialmente são conhecidos como jogos de fortuna, jogos de sorte e de azar, mas, por cá, é mesmo “bater ficha” que entrou no léxico e parece que é para ficar.
Todo o mundo agora sabe o que significam expressões como “a ficha entrou”, “a ficha não entrou ou ainda a frustrante “a equipa X estragou a minha ficha”.
É a nova linguagem do mundo do empreendedorismo em Angola. Apesar dos muitos nomes, eu prefiro chamar-lhes de “jogos de azar, sorte e azar novamente”.
Pode parecer complicado, no entanto, é fácil de explicar. Primeiro, foi preciso um grande azar colectivo para que esses jogos atingissem o sucesso que agora registam.
Já antes destes, tivemos uns tantos jogos de sorte, que até eram bem menos complexos, como um que bastava raspar um cupom e esperar que o nosso número fosse o sorteado, mas que não tiveram tanta sorte. Na altura, tínhamos (ou o país tinha) dinheiro suficiente para que lhes prestássemos atenção.
Foi o azar (ou devo dizer crise?) que nos escancarou a porta às fichas. A economia soçobrou, o desemprego subiu, a inflacção cresceu, o poder de compra anda a rastejar-se pelas ruas da amargura.
Olhamos para o horizonte e não vimos mais do que uma densa e negra neblina. Percebemos então que, diante de um tão grave cenário, atingir o bem-estar e a riqueza pelas vias tradicionais do estudo, do trabalho árduo, da competência, e de uma série de outros valores seria quase impossível. Foi neste cenário que nos surgiram os arautos da sorte.
Pessoas que nos garantiram que podíamos dormir pobres e acordar ricos no dia seguinte, bastava para isso apertar só mais um pouco o cinto e aplicar aqueles nossos poucos recursos que não dão para aplicar em mais nada senão em golpes de fé e de sorte.
E, assim, as fichas tornaram-se autênticas boias de salvação jogadas a um mar cheio de náufragos. E salve-se quem puder! Cedo de manhã, já as casas de apostas registam fortes enchentes que muitas vezes rivalizam com os mais famosos centros de emprego na Europa.
São estas que nos fazem os novos salários para compensar os que a crise nos roubou. Mas as fichas não atraem apenas os sem emprego. Aos poucos, nos vão roubando até os funcionários que ainda podiam contribuir para criar alguma riqueza.
Gerentes bancários, médicos, professores, taxistas, todos agora tiram um tempo do seu horário de trabalho para apostar, e lembro-me agora dos polícias que vejo todos os dias a pedirem prioridade em filas enormes para baterem umas fichas. Ninguém reclama, andamos todos atrás da sorte.
E alguns vão tendo. Naquela aleatoriedade trocista da vida, às vezes, a equipa da casa vence, ambas marcam, ou há mais de 1.5 golos tal como previmos e, então, ganhamos alguns trocados.
É essa a sorte que tantas vezes é aleardeada como a derradeira bênção que a todos pode tocar, mas que, na realidade, é demasiado rara; assim não fosse estaríamos todos ricos e as casas de apostas na falência.
Mas é preciso esse pouco de sorte para manter os apostadores presos ao jogo, agarrados a um pequeno fio de esperança, como um pescador que coloca uma isca na ponta de um traiçoeiro anzol para fisgar um peixe. E não é que estamos sendo fisgados? Daí, o azar novamente.
Quase ninguém diz, no entanto, mais vezes se perde do que se ganha. Até mesmo aqueles a quem a sorte bate à porta raramente contabilizam quantas vezes ou quanto perderam antes do dia glorioso.
Calam-se e mal sabem (ou preferem ignorar) que é preciso continuar a perder para que as casas de apostas cresçam e a isca, perdoem-me, os prémios aumentem.
São as nossas derrotas que mantêm o jogo de pé e são elas que nos fazem voltar ao jogo porque quanto mais se perde maior é a necessidade de ganhar.
E vamos caminhando, sem que alguém perceba o terrível ciclo do vício em que muitos de nós estão a atirar-se de corpo e alma. O vício cresce na mesma proporção do nosso desespero.
Conseguiremos um dia voltar a sair? Sairemos ilesos? Talvez, quando a sorte voltar a bater à porta do país.
Quando a economia voltar a subir, quando emprego crescer, quando os preços nos permitirem voltar a viver, quando o futuro nos permitir voltar a sonhar.
Enquanto esse dia não chega, e porque o país precisa urgentemente de receitas, sugiro a única coisa que nos resta: “E se juntássemos todo o nosso dinheiro e batéssemos uma ficha?”
Por: SÉRGIO FERNANDES
*Escritor