As caminhadas matinais têm sempre das suas. Quem o faz com regularidade tem, às vezes, a impressão de que possui alguns companheiros indirectos, ou seja, aqueles indivíduos com quem nos cruzamos sempre que nos pusemos a efectuar o referido exercício físico, percorrendo as ruas das circunscrições em que habitamos. Há algum tempo que vou cruzando com dois senhores, já quase de tenra idade, que estão sempre a caminhar juntos.
Aparentam ter cerca de 70 anos, ou próximo disso, com fortes indícios de que sejam reformados, aproveitando agora o merecido descanso depois de largos anos de trabalho. Com o andar do tempo, era inevitável que os saudasse com regularidade.
E, às vezes, com o tom da voz um pouco mais elevado, se consegue perceber o que tratam durante a caminhada lenta por algumas das zonas mais calmas da Centralidade do Kilamba, onde o silêncio, sobretudo às manhãs, com o mínimo sussurro, é quase de conhecimento obrigatório para quem com eles cruza.
Ontem, quarta-feira, 5, não poderia ser diferente. Sempre ligados, assim que passo por eles, um dos caminhantes atirou: ‘assim como é que vão ter o país nas mãos.
Se mesmo muito novos já estão a roubar muito’. Quando virei, notei um sorriso no rosto dos senhores, acreditando eles, certamente, que a mensagem para mim tinha passado. Não foi preciso muito esforço para se perceber que o assunto em análise se prendia com os jovens técnicos da Administração Geral Tributária envolvidos no desfalque de cerca de 7 mil milhões de kwanzas.
Com passos largos, desfiz-me apressadamente da posição em que se encontravam os dois senhores, mas com a sensação de que agora deve ser desta forma que os mais velhos passarão a encarar muitos dos mais novos que, durante anos, se queixavam da falta de oportunidade.
Quando lhes é dada a possibilidade de poderem fazer história, alterando o quadro que sempre criticaram, as informações que surgem são as de que têm um apetite mais voraz do que aqueles que acusavam de terem delapidado o erário.
Nos últimos tempos, o desfalque na AGT, para além da carga informativa nos meios de comunicação social, tornou-se também motivo de comentários em várias esferas da vida, seja ela social, política, económica e até religiosa.
E uma das questões que vai inquietando a muitos é o facto de estarmos perante jovens ainda na flor da idade, que possuíam um salário diferente da maioria dos angolanos, mas nem com isso pestanejaram em defraudar o que é suposto ser de todos.
Não espanta se, nos próximos meses, até que este caso seja julgado e os culpados condenados, muitos bons jovens não sejam vítimas de uma certa crispação e falta de oportunidade por conta de exemplos como estes da AGT.
É que, durante anos, se teve a impressão de que os roubos e a delapidação do erário fossem coisas de gente graúda, que não conseguia resistir. Nas últimas semanas, nos apercebemos de que não, porque, afinal, há gente nova muito mais perigosa do que alguns burocratas do ‘ancien regime’.