Recebi um vídeo, disponível no Youtube, de uma sessão da Assembleia Nacional da África do Sul. No mesmo, uma Deputada do Partido EEF acusa, em alto e bom som, o Vice-Presidente do Parlamento, Deputado Lechesa Tsenoli, que conduzia a sessão, de ser «anarquista».
Este, perplexo, seguindo as normas regimentais contesta: «Senhora Deputada, exijo que se retrate agora.» O que se seguiu foi um trocadilho de palavras entre o Vice-Presidente e a Deputada.
No último plenário, antes da dissolução da Assembleia da República Portuguesa, no pretérito mês de Janeiro, os Deputados do CHEGA, do PCP e do Bloco de Esquerda envolveram-se numa calorosa discussão.
A uma dada altura, um Deputado chamou de “mentiroso” ao Líder do CHEGA, Deputado André Ventura, ao que este, sem papas na língua, retorquiu: “Mentirosa é a tua tia.”
Que não se julgue, entretanto, que esse calor do debate parlamentar só ocorra nos demais parlamentos. Também são conhecidos, entre nós, momentos de tensão resultantes da violação do decoro e do uso de linguagem não-parlamentar, isto desde os tempos da então Assembleia do Povo até aos dias actuais.
Um destes casos ocorreu numa sessão plenária, em 2012, quando o então Deputado Makuta Nkondo propôs a destituição do Presidente da República, José Eduardo dos Santos, assim como a sua “detenção imediata.”
Em reacção, o então Presidente da Assembleia Nacional, Paulo Kassoma, considerou que as palavras do Deputado Makuta Nkondo foram ofensivas à honra, à dignidade e ao bom nome do Presidente da República.
Consequentemente, foi mandado instaurar um processo disciplinar contra o referido Deputado. Os exemplos que citámos resultam da constatação de que o parlamento é, sobretudo, um espaço de debate político.
Logo, ser parlamentar pressupõe, antes de mais, parlar, isto é, falar. Aliás, não é por acaso que, etimologicamente, a palavra parlamento tem a sua origem do francês “parler”, que significa falar. Tal como a voz é o instrumento de trabalho de um artista ou professor, o mesmo sucede com a fala em relação a um parlamentar.
Por conseguinte, ao longo do seu mandato, o parlamentar tem de parlar, comunicando, por via de discursos e intervenções, ideias representativas dos interesses dos eleitores.
É, pois, falando que os parlamentares se entendem. Esta é, de resto, a essência da democracia representativa, razão pela qual os debates parlamentares são considerados uma forma de manifestação do discurso político.
Para garantir que o parlamentar exerça a sua liberdade de expressão, as constituições dos Estados e os regimentos das Assembleias Legislativas conferem-lhe imunidade para que não seja responsabilizado pelas opiniões que veicule no Plenário e nas comissões parlamentares. Tal imunidade, porém, não é absoluta. Ela conhece limites, incluindo ao nível do uso da linguagem.
O parlamentar goza da liberdade de expressão, mas deve fazê-lo sem incorrer no uso de linguagem não parlamentar. Por essa razão, o discurso parlamentar não está isento de regras destinadas a assegurar a preservação do chamado decoro parlamentar.
Neste contexto, é entendimento geral que, em obediência ao decoro parlamentar, certas palavras, expressões e gestos (linguagem gestual) são considerados não parlamentares.
Embora não exista uma definição legal do que seja a linguagem não parlamentar, a tradição, uso e costume parlamentares consideram como tal o uso de palavras, expressões e gestos atentatórios do decoro, da urbanidade, do civismo e da dignidade do Parlamento e dos seus membros.
Todavia, importa recordar que cada parlamento opera num contexto social, cultural e linguístico próprio, circunstância que tem implicações na qualificação do que pode ou não ser considerado linguagem não parlamentar.
Logo, um termo considerado, num dado país, como lesivo à linguagem parlamentar, pode não o ser noutro. Se, na Zâmbia, viola a linguagem parlamentar quem, no Plenário, trate um Parlamentar por “Old Man” (Mais Velho), tal não é o caso em Angola.
Para conferir maior certeza e segurança, alguns parlamentos têm um catálogo de termos e expressões cujo uso atente contra a linguagem parlamentar. Tal é, por exemplo, o caso da Índia e da Zâmbia.
Eis alguns exemplos daqueles termos: anarquista, bêbado, cobarde, delinquente constitucional, diarreia verbal, mente confusa, mentiroso, entre outros.
Trata-se, com efeito, de um saco sem fundo, sujeito a uma actualização periódica, tendo em conta que a língua é um fenómeno social em permanente mutação. Para elucidar isso, basta ver que uma mesma palavra pode, em vários momentos históricos, ter conotações diferentes.
Se, na I Legislatura da Assembleia Nacional, a palavra “marimbondo” significava apenas um animal, a partir da IV Legislatura em diante, ela ganhou um outro significado: “corrupto.”
Na condução dos trabalhos, compete ao Presidente do Parlamento velar pela observância do decoro parlamentar, em geral, e pelo não uso de linguagem não parlamentar, em particular.
Não é um exercício fácil porquanto, no calor dos debates, alguns parlamentares podem usar, deliberadamente, ou não, linguagem não parlamentar.
Neste sentido, o Presidente do Parlamento tem o desafio de ter de coabitar com dois interesses, nomeadamente o de garantir a liberdade de expressão dos parlamentares, por um lado, e o de manter o respeito do decoro parlamentar, por outro. Por isso, não é exagero algum afirmar que a manutenção da ordem no plenário depende, em larga medida, do respeito pelo decoro parlamentar.
Deste modo, os regimentos internos dos parlamentos prevêem que os seus Presidentes, no caso de uso de linguagem não parlamentar, instem ao parlamentar faltoso que se retrate. Se ele não o fizer, existe, então, a alternativa de o mesmo ser expulso da sala do plenário.
O caso mais extremo é a instauração de um processo disciplinar por violação do decoro parlamentar, sendo o mesmo conduzido pela comissão parlamentar competente em razão da matéria.
Nesta conformidade, em Angola, o Código de Ética e Decoro Parlamentar prevê a aplicação da medida disciplinar de censura registada, se outra mais grave não couber, ao Deputado que “usar de expressões atentatórias ao decoro parlamentar, […] mormente as que constituam ofensa à honra.”
O mesmo Código impõe, ainda, a obrigação de o Deputado “[t]ratar com respeito, independência e urbanidade os colegas, as autoridades, os servidores da Assembleia Nacional e os cidadãos.” Referimo-nos, antes, à possibilidade de o parlamentar fazer uso deliberado da linguagem não parlamentar, incluindo até o proferir de ataques e insultos.
Esta estratégia decorre do facto de o orador estar plenamente ciente do impacto, sobretudo político e social, da sua conduta. Considerando que as sessões parlamentares são públicas, a tribuna do parlamento transforma-se, deste modo, numa oportunidade para o reforço de uma dada mensagem política.
Esta conduta ganhou outros contornos com a existência e a consequente popularização das redes sociais, local onde o parlamentar faz questão de postar as respectivas intervenções.
Muitas delas acabam, depois, por tornar-se em autênticos soundbites (frases de impacto). Há, portanto, que reconhecer este fenómeno deliberado de descortesia verbal parlamentar, o que resulta do facto de isso, eventualmente, gerar dividendos para a imagem do parlamentar. Portanto, o uso de linguagem não parlamentar é contrário às normas, costumeiras e de direito positivo.
Todavia, tal ocorre porquanto os parlamentos são o epicentro do debate político nacional. Por isso, o recurso à linguagem não parlamentar ou à linguagem politicamente incorrecta é uma consequência da competição e da luta pelo poder.
A observância do decoro parlamentar é, entretanto, um requisito indispensável a um debate saudável de ideias e pontos de vista, pelo que deve ser um valor a reter na conduta dos parlamentares.
Por: AMÍLCAR MÁRIO QUINTA