Não existe no Bairro Camama qualquer arquivo histórico onde é possível encontrar factos associados ao seu surgimento, evolução bem como uma contextualização sobre a origem da sua população.
Tive interesse em conhecer a história do bairro quando comecei, em 2015, uma pesquisa sobre os imigrantes da RDC que se estabeleceram naquela Bairro.
Ausência de informações importantes sobre o bairro fez com que eu contactasse Administração comunal a fim de me puderem indicar uma figura conhecedora da realidade histórico-social do bairro.
Felizmente me foi indicado o soba Manuel António Luís que contava, em 2015, com os seus 78 anos de idade e nasceu, justamente, no mesmo bairro.
Desde 2004 que tinha assumido a responsabilidade de ser a maior autoridade tradiconal daquele bairro e conversar com ele foi algo de extraordinário e notava-se, na altura do diálogo que mantivemos, o seu crescente interesse em contar-me tudo quanto sabia sobre a realidade local.
Eu prometi ao soba Manuel que um dia faria um pequeno texto de opinião sobre o Camama e, com o mesmo, poderia despertar o interesse de todos aqueles que se interessam pela história de Angola e, em especial, do bairro Camama.
O bairro Camama era, há mais de 50 anos atrás, conhecido como Sanzala do Camama isto é no período colonial quando a dominação portuguesa tinha força e expressão em Angola.
Antes da presença colonial o bairro era administrado por uma autoridade tradicional que respondia pela população aí estabelecida.
A sua população é oriunda de várias regiões de Angola especialmente da província do Kwanza Norte que, pelo que tudo aponta, possam ter sido os primeiros a habitar a região.
A presença colonial portuguesa começou a verificar-se a partir dos anos 30 e 40.
Havia todo interesse das autoridades coloniais que a região fosse controlada e tivesse presença da população portuguesa sobretudo os comerciantes cujas actividades poderiam expandir quer a gastronomia quer os outros aspectos ligados à cultura portuguesa.
Em 1954 surgiu a loja do Nangala, de um português que tinha sob seu controlo várias propriedades geridas por empregados brancos.
Nesta fase, a sanzala do Camama não tinha uma significativa densidade populacional tal como se verificava em outras sazalas sob controlo das autoridades portuguesas. O número de portugueses não era tão expressivo se comparado ao dos autotones e entende-se, entretanto, que o bairro estava a conhecer um crescimento assinalável caracterizado especialmente pela presença de mais autotones.
Estima-se, neste período, que menos de 200 pessoas seriam o total de habitantes residentes devido, especialmente, aos vastos espaços desabitados que serviam de lavras e locais de pastagem animal.
No entanto, as famílias que lá residiam viviam nas respectivas lavras e a agricultura representava um dos principais motores da economia familiar se não mesmo o principal.
Provavelmente por esta razão havia, por parte do regime colonial, o interesse em reduzir a capacidade dos residentes de se auto-abastecer, através da agricultura familiar, e potenciar comerciantes portugueses que tivessem interesse de lá se instalarem na perspectiva de estimular a estratégia do povoamento branco.
Por esta razão as lojas de comerciantes portugueses continuariam a surgir como estratégia de controlo da produção e venda de produtos naquela região.
Em 1962 nasceria a segunda loja na sanzala do Camama pertencente, a exemplo da primeira, a um cidadão português que atendia pelo nome de António.
Provavelmente, a falta de uma considerável concentração populacional na região, sobretudo de brancos, não motivava outros comerciantes portugueses a investir na Sazala do Camama.
A população aí residente era de baixa renda e a maior parte dependia de uma economia de subsistência.
Apesar de haver esta iniciativa das familias, as lojas criadas pelos comerciantes portugueses desempenhavam o seu papel, tal como se poderia constatar em outras partes de Angola com presença colonial.
Quer a Loja do Nangala quer a Loja do António vendiam os seus produtos aos negros aí residentes nomeadamente peixe seco, fuba de milho e de bombom, arroz e outros produtos de consumo do dia-a- dia. O arroz não tinha muita saída pois que a população local não a consumia muito preferindo, em substutuição, o tradicional funge.
Para além do arroz, muitos outros produtos de origem europeia não teriam saída naquela sazala por não fazerem parte da gastronomia daquela população servindo, assim, para o consumo da pouca população portuguesa que aí se havia instalado.
Os comerciantes portugueses da Sazala do Camama, detentores das lojas, conseguiam comprar alguns produtos a agricultores locais, sobretudo frutas, a preços extremissímamente baixos e escoavamnos para a baixa da cidade onde havia uma considerável concentração da população branca.
Em 1968 o Governo colonial, devido aos acontecimentos de 1961, com ataque de alguns angolanos às cadeias, decidiu controlar melhor aquele bairro tendo atribuído o nome de sanzala do Camama e indicou um morador local, Adão Domingos, de sua confiança, para ser o seu regedor.
A escolha de Adão Manuel deveu-se ao facto de pertencer ao grupo étnico que maior representatividade tinha na sazala sendo visto, pelos portugueses, como um elo estratégico na manunteção da ordem social e jurídica colonial.
Adão Domingos passou, então, a ser o Regedor do Camama – o primeiro negro assumir um cargo de responsabilidade naquela sazala e integrado na administração colonial da época.
Para além dele, a máquina administrativa colonial contava com outros negros para preencherem o corpo de trabalhadores. Estes eram recrutados de entre os moradores locais que demonstravam total lealidade ao poder colonial instituido.
A maior parte destes recrutados, ocupavam as vagas de Cabo Civil e de Sipaios.
O cabo Civil tinha a missão primordial de administrar a justiça, cobrar os impostos aos habitantes da sanzala.
Neste período, os negros residentes na Sanzala do Camama pagavam 210 escudos às autoridades colonias anualmente, um valor bastante elevado naquele tempo.
Os sipaios, diferentes dos Cabos civis, serviam como forças de manutenção da ordem pública colonial e cabia, pois, a estes realizarem buscas e detenções de todos aqueles que não pagassem os impostos e se opunham às regras aí estabelecidas pela administração colonial.
Com efeito, os negros que integravam a máquina administrativa colonial, quer na Sazala do Camama quer em outras localidades com presença colonial em Angola, não eram muito bem vistos pela maioria.
Eram, de um modo geral, considerados de traidores. Os habitantes das comunidades mantinham uma relação de total desconfiança com estes funcionários da administração colonial por se tratar de pessoas que dificultavam, em demasia, a vida dos seus co-cidadãos para ganharem maior confiança dos colonizadores.
Alguns destes funcionários, negros, viriam integrar a polícia secreta portuguesa (PIDE) tendo, boa parte dos quais, se revelado como peças fundamentais no desmantelamento de acções e/ou reacções que poderiam alterar a ordem colonial na sazala do Camama. Eram estes, sobretudo por dominarem as respectivas línguais locais, que davam informações relevantes às autoridades permitindo, assim, a punição severa de todos aqueles que tentassem desviar-se do cumprimento da ordem colonial em vigência na época.
A máquina colonial na sazala do Camama conseguiu controlar o comportamento colectivo das populações com a implementação de um regime que repremia, sistematicamente, a dignidade dos nativos.
Não se poderia, nessa altura, falar-se de direitos fundamentais e, muito menos, do respeito pelos Direitos Humanos.
O controlo colonial sobre o bairro passou a perder direcção com a evolução da luta de libertação nacional.
Em 1975 se definia o fim da presença colonial em Angola e a sanzala do Camama viu-se, igualmente, liberta do regime.
Com o fim do colonialismo e consequente organização político-administrativa do país, pelo MPLA, a sanzala do Camama permaneceu, durante anos, sob administração de uma autoridade tradicional e do Estado a exemplo do que sucedeu com muitos outros bairros de Luanda.
O soba passou a ser a referência máxima e o representante legítimo do Estado junto às populações.
Esta situação deveu-se, em primeiro lugar, à não existência, em toda extensão do país, nos anos subsequentes à independência nacional, de representantes administrativos do Estado devido à guerra civil que eclodiu concentrando os esforços do Governo Central para sua gestão.
Em segundo lugar, havia necessidade de se manter uma melhor cooperação com os Sobas por questões que tinha que ver não só com a história pré-colonial mas também pelo facto de os sobas gozarem de uma grande aceitação e respeitabilidade pelos povos das aldeias ou bairros em que viviam.
O Soba é, em Angola e em muitos países africanos, uma autoridade tradicional. De qualquer modo, o bairro Camama 1, antiga sazala do Camama, teve, em 1975, o Soba António Miguel como a sua autoridade tradicional.
O mesmo nasceu, cresceu e moldou-se naquele bairro sendo, sem qualquer dúvida, um conhecedor das populações locais bem como da sua história.
Ficou, como responsável do bairro durante 29 anos, ou seja de 1975 -2004. Com a sua morte, em 2004, sucedeu-lhe o seu sobrinho que atende pelo nome de Manuel António Luís que, até 2015, altura em que mantivemos o diálogo, era a principal autoridade tradicional do bairro e conselheiro da administração comunal.
Para além dele mais dois Sobas de escalão inferior, nomeadamente Morais João e Cipriano Olímpio constituiam a sua equipa de sobado.
Estes dois últimos servem como uma especié de assessores e qualquer um deles pode ser um potencial substituto num eventual impedimento do soba princípal.
Os Sobas, no bairro Camama, trabalham com a administração comunal na identificação dos principais problemas da população residente.
Neste particular, o Soba aparece como um conselheiro para que as políticas comunitárias sejam implementadas de acordo com as reais necessidades dos residentes do bairro.
São,pois, os sobas que ajudam a Administração comunal no registo da população e, sobretudo, na identificação daqueles que são, realmente, os nativos daquele bairro ou não. Eles têm uma intensa mobilidade pelo bairro e conhecem parte considerável dos residentes aí estabelecidos – por isso é que são considerados como colaboradores fundamentais da Administração do bairro.
Como era de esperar, o seu trabalho foi reduzindo a medida em que a administração local do bairro foi crescendo quer em termos de acções quer em termos de controlo da população por parte dos representantes da máquina estadual. Havia, no entanto, toda uma necessidade de o Estado ter uma presença mais visível com a disponibilização de todo um conjunto de serviços essenciais a vida quotidiana do bairro.
A mesma foi institucionalizada no final dos anos 90, isto é, portanto, em 1998 com a nomeação de um administrador – por sinal a primeira autoridade naquele circunscrição com responsabilidades de representar a autoridade e interesses do Estado.
A presença das autoridades administrativas do Estado não pressupôs, desde logo, uma resposta imediata aos problemas que afectavam o agregado pipulacional do bairro e muito menos limitou o raio de acção e/ou influência das autoridades tradicionais.
Numa primeira fase, a administração do camana se terá ocupado das questões básicas como é o caso do ordenamento e legalização dos terrenos vendidos pelos antigos residentes aos novos – bem como outras questões de fácil resolução que implicava certificação do Estado. Tratava-se, pois, de um bairro que começava a registar um crescimento acentuado a partir dos anos 80 se comparado, obviamento, com o período colonial onde se verificou uma baixa densidade populacional.
Este crescimento representou, de um modo geral, a integração de muitas populações de diferentes origens que fugiam de outras províncias por razões do conflito armado que assolava o país.
A predomínio da maioria Kimbundu que se verificava ao logo do período colonial passou, com este crescimento do bairro, a perder relevância em virtude da presença massiva de outros grupos étnico-línguisticos das distintas regiões de Angola.
O povoamento do bairro, neste período, começou a ser preenchido pelos povos provenientes das províncias do Bié, Huambo, Uíge e Cunene tendo, com o tempo, emergido novos padrões comportamentais cujo impacto moldou a estrutura comunitária do bairro.
A partir do ano de 2000, o crescimento do bairro já era bastante notável e estima-se que a sua população já estava acima de 10 mil habitantes.
Hoje o Camama, 20 anos depois, conheceu uma realidade nova com presença de muitos imigrantes e empresas.
É, contudo, dever dos historiadores trabalharem mais em pesquisas de campo no sentido de aprofundarem outros aspectos relevantes sobre a história do bairro e quiça mesmo trazer outras perspectivas que não conseguimos fazer referência neste breve texto.
Por: LUTINA SANTOS