O cansaço, ludibriado pela vibrante espectativa de contemplar a aurora e testemunhar o primeiro ocaso no “Gigante Asiático”, amainou a efervescência das eternas 16 horas de espera/vôo, na tríplice Luanda/ Adis Abeba/Pequim.
Em sentido espiral, a génese da vibração, tal qual boa nova em povo errante, foi ao tilintar o sonido de que constávamos da restrita nomenclatura do grupo selecionado para a desejada empreitada à “Grande e Majestosa China”.
Os salpicos iniciais da exemplar organização do povo que estampa provas de dedicação e suor, para o bem comum e da humanidade, advieram logo no processo mobilizativo de arranque da jornada até ao embarque.
Impecável! Feita a tríplice, o anestésico primário foi o pouso no tapete rolante sobre o novo piso do extenso corredor que nos leva ao primeiro ponto de rastreio. Eis chegados à Pequim! À surdina, murmurávamos: “é nós”! Estávamos contabilizados entre os mais de cem milhões de passageiros que, por ano, passam pela “Estrela-do-mar”, com sistemas tecnológicos avançados e reconhecimento facial omnipresente.
Cumpridos os imperativos da Administração Nacional de Imigração, é tempo para dar lugar ao fascínio multicolor da obra deixada pela arquitecta, Zaha Hadid (que morreu em 2016).
É a evidente demonstração da força económica da China, revestida de um sinal de futuro por cada pedaço do gigantesco projecto de que brotou o Aeroporto Internacional de Pequim Daxingi.
“É nós!….” Flagelados pelo esplendor de um virtual real em cada milímetro; estávamos no maior terminal aeroportuário do mundo, num edifício único – são 700 mil metros quadrados de terminal, como noticiou a BBC.
Eis-nos no primeiro de dois andares que repartem as áreas dedicadas às chegadas e partidas, conforme os vôos, sejam eles domésticos ou internacionais.
Foi ali, logo na primeira esquina, do outro lado da barreira metálica, depois da inspeção às malas, esvoaçavam as bandeiras de Angola e China; era o Luís e a Sara (nossos cicerones), alteavam cartazes estampados com a nomenclatura a que me referi (Celma Javala – TPA, Yambeno Daniel – Angop e Lopes Canhina – RNA), ofuscados pelos gigantes caracteres – “Sejam Bemvindos”! Sorridentes, com o português mandarizado, foi o calor afectivo, advindo do fraterno abraço que se sublevou a qualquer linguagem, naquela tarde desigual a qualquer uma outra que já vivi.
De malas feitas, é tempo para rumar do extremo sul da cidade (aeroporto), num percurso facilitado pela ligação ao centro de Pequim, onde, para além das vias rodoviárias, foi construída uma estação e toda a ligação metroviária subterrânea de alta velocidade.
No trajecto dos 45 minutos sobre as rodovias erguidas, numa clara demonstração do compromisso com a preservação ambiental, o Luís apimenta, e que é verdade: “a cidade (Pequim) é das poucas do mundo com dois aeroportos internacionais.
Neste caso, com o Pequim Capital. O trânsito ordeiro, as múltiplas faixas de rodagem, a paz que exala o caminhar tranquilo e sereno dos habitantes, as centenas de bicicletas e motocicletas (eléctricas) que apinham as ruas (estacionadas e em movimento) é a sinalização de que há trabalho que harmoniza tudo, até o vento, os falares, o céu e as aves.
Longe do encanto da narrativa histórica da Pátria de Confúcio e Mao-Tsé Tung que nos foi desembainhada por distintos profissionais competentes, no arranque do Seminário para Oficiais de Jornalismo e Jornalistas dos Países de Língua Portuguesa, como a portentosa “Uma Faixa, Uma Roda” e a Cooperação Económica entre a China e os Lusófonos, o bom mesmo foi sair da caverna da sala, tal qual o metafórico mito de Platão, e rumar para o primeiro ponto.
Não há quem engavete o reluzente e despretensioso sorriso ao pisar, cheirar e tocar o Milenar Património Mundial da Humanidade – “A Grande Muralha”.
Tal como no emblemático, mítico, prodigioso e venerado “Templo do Céu”(entre 30 a 40 mil pessoas visitam-no diariamente), cujo percurso embrenha-nos às sublimes fases de súplicas do Imperador a intercessão celestial para as colheitas (na Primavera) e dar graças ao Céu pelos frutos obtidos (no Outono), são incontáveis, como no formigueiro, os múltiplos grupos de turistas, sobretudo internos, que entram e saem em caravanas, transportados por autocarros para absorver e viajar no tempo pelos perto de oito mil quilómetros da protetora muralha.
Depois desta, fiquei calmo! Percebi que a força que se vislumbra nas novas rodovias, que surgem entre recéns e altos edifícios, não vem de hoje.
Tem história e trajetória milenares. É, sim, um percurso marcado pela liderança, solidariedade, prosperidade, cultura, harmonia, igualdade, justiça, patriotismo, dedicação, integridade e simpatia.
É a clara a representação da materialização dos princípios básicos da filosofia confucionista, num país que priorizou o desenvolvimento económico nas ultimas 3 décadas, emaranhado em tudo que se espera de um bom cidadão em qualquer lugar do planeta.
Sim, o pensador e filósofo oriental (Confúcio 552 a.C. e 489 a.C.) formulou o que se tornaria o confucionismo, uma ideia que apregoava um bom governo, cujos alicerces estão baseados na tolerância, respeito, altruísmo e na ética.
Tendo como umas de suas frases mais emblemáticas: “Coloque a lealdade e a confiança acima de qualquer coisa; não te alies aos moralmente inferiores; não receies corrigir teus erros, não corrigir as próprias falhas é cometer a pior delas.”
Mas, é na moderna cidade de Nanning, capital e maior cidade da região autónoma Zhuang de Guangxi, que está a nascer o futuro que hoje é realidade nos reluzentes arranha-céus e entrecruzadas e largas rodovias que se expandem entre as montanhas da região, bafejada pelo serpentear do importante e estratégico rio Yong.
Alias, é por isso que está a desabrochar o portentoso Parque Logístico Internacional Sino-Singapura de Nanning e o Guangxi Beibu Gulf International Port Group Co, Ltd. É a evidência do sonho que já é real. Tecnologia de ponta e auspicioso futuro.
Futuro que renasce nas comunidades adjacentes como a região autónoma da nacionalidade Zhuang de Guangxi que, em menos de dez anos tem novo rosto, sem pisotear a alma do povo. Modernizou-se, mas tem as matrizes da sua idiossincrasia.
O mesmo sucede com os distritos históricos e culturais em “Três Ruas e Dois Becos” de Nanning. A culinária, a literatura, os chás, as bebidas tradicionais e a harmonia entre o antigo e o novo, o ancestral e o moderno.
Que casamento! Nanning, tão nova quanto velha, capital da região desde 1912 e fundada no século X, foi no Yuda International Hotel, de quatro estrelas, que ficamos absortos.
Entre os trinta delegados dos Países Lusófonos foi evidente o desejo de construir uma cabana e esquecer o mundo, como a narrativa do Monte da Transfiguração nos Evangelhos.
Longe de toda esta grandiosidade que se ergue em qualquer canto da “Grande China”, foi, sim, o cheiro que senti dos meus ouvidos das similitudes nas sonoridades do linguajar do mandarim e umbundo que atiçou o meu coração.
A tonalidade dos falares dos povos é cantada, com excessiva nasalação, intercetada por sons recuados, com doses intermédias palatais. Era como ouvir minha avó (de feliz memória) a ordenar, no interior da cubata, coberta de capim, erguida de adobe, a fumegar à exaustão; “tanga, otco okakale ulume wa sumbiwa” (estude para seres um homem respeitado).
Senti que, tal como nós ovimbundo, os chineses, apesar da diversidade cultural e multiplicidade de línguas, transmitem emoções profundas por meio da tonalidade/ sonoridade que acarretam os caracteres que formam as palavras, e essas as frases e exalam a cultura e o ser nestes sonidos.
Ao ouvi-los, com frequência, lembreime que sempre lacrimejo (ndilila), distante da terra, quando ouço um “Ndondi” de Handanga, “Olofumbelo” de Tchipa, uma “Morainha” dos Irmãos Almeida ou então quando, por profundos desejos de sen que só sinto pela língua materna, vou ao Canal Internacional da RNA para “bater um papo”, na minha (nossa) língua, com os colegas da área. Ai, sim. Cheirou similitude.
Esta similitude levou-me a reflectir que devíamos, para além de outros bons exemplos, retirar o que os chineses fizeram com o período de restrições advindas de conflitos.
Foi-nos contado, à mesa, no Hotel que serviu de centro de aquartelamento, e que servia uma diversidade e indiscritível lista de sabores do manancial gastronómico chinês, que as inúmeras iguarias que nos eram servidas, entre dez a quinze, em cada refeição, muitas delas estranhas ao nosso paladar, eram resultado de uma recolha e catalogação feitas nestes períodos de apertos.
Contava um dos cicerones que, face a escassez de alimentos na época de conflito, eram os mais velhos que serviam de cobaia para experienciar o que a fome pudesse matar. Passadas 72 horas se não morrer, depois de comer, é porque é comestível.
E assim se enriqueceu o cardápio chinês. Cheirou e vi similitude porque, nos 55 dias de “kitotas” (guerra civil) no Huambo (minha terra) e os dois anos de penúria, fomos obrigados a experimentar um sem fim de manjares/comidas que nos mantiveram.
Só que, infelizmente, raramente servem-se, com o devido requinte e reajuste à contemporaneidade, nos restaurantes ou sentadas familiares.
Provei, na China, uma “bulunga”(milho fervido) caprichada. Também podíamos.
Gostava do sabor da toupeira. Foi ai que todos os cheiros que exalavam das gigantescas, diversas e apinhadas cozinhas de Pequim, Nanning e Guangxi levavam-me ao turbilhão de similitudes entre o umbundo e o mandarim; desde o respeito excessivo, a obrigatoriedade em denominar mano ao mais velho, desde a família até a escola, a prioridade que se presta ao idoso, que são os principais cuidadores dos netos.
Só faltou similitude nas enchentes organizadas do metro de Pequim e o nosso alvoroço na superfície da nossa Luanda em hora de ponta.
Esta é a diminuta partícula do universo chinês que se me deu a conhecer, proporcionando aos seus visitantes, uma experiência única e inesquecível.
Há/Existem outros e inúmeros cheiros que, ainda que dissonantes, podem soar a similar.
Por: JOSÉ LOPES CANHINA
Jornalista angolano