Quarenta anos depois, prevalece a ânsia de voltar à autenticidade e ao mesmo tempo avançar para a modernidade. Sobre um manto de refugos resistentes às intempéries, refunda-se a cada ano esta esperança sacralizada por Agostinho Neto no célebre comício do Cazenga, quando impulsionou o regresso ao Carnaval como festa popular, despida de preconceitos e montra para as melhores sátiras sociais dentro de um contexto revelador do nosso génio criativo e da nossa característica pacífica e divertida.
POR: Paulo Gomes
O Carnaval saiu à rua em 1978, três anos após a proclamação da Independência Nacional, como uma conquista do povo, ávido para manifestar espontaneamente a sua alegria e para colocar em evidência as suas tradições. Num misto de júbilo patriótico e de tributo aos ancestrais, os melómanos tomaram as ruas de Luanda e espalharam entusiasmo, graciosidade, simpatia, sonoridades, versatilidade e a genuinidade dos ritmos e passos de dança do mosaico de manifestações paridas da nossa realidade multicultural. Por isso, até os que não vivenciaram aquele capítulo do nosso Carnaval sabem da proeza do Kabocomeu com a sua kazucuta inebriante e sem igual.
Os temas dos enredos levados ao local do desfile oficial reflectiam as situações quotidianas dos musseques, os arrufos mal resolvidos ou apenas pitadas de provocações passageiras e totalmente desarmadas de condimentos de conflitualidade, respeitando integralmente o espírito carnavalesco. Até que um dia alguém, não se sabe bem quem, entendeu tomar o Carnaval para lhe dar o cunho de meio de intervenção política. Os grupos acabavam obrigados a apresentar canções, teatralizações e alegorias em função de uma pauta pré-concebida pela comissão organizadora. Cantavam todos o poder popular e não o podiam saborear na prática. Era um contexto muito distinto, mas cujos resquícios acabaram por chegar aos tempos actuais, quais tumores metastáticos. E não precisamos de microscópios para fundamentar este diagnóstico.
O excessivo envolvimento do Ministério da Cultura e dos Governos Provinciais na organização dos desfiles competitivos já deveria ser coisa do passado. Revela incapacidade de enveredar para a gestão participativa, num quadro em que os entes públicos actuam apenas no sentido de disponibilizar os incentivos e aplicar os mecanismos de fiscalização da gestão dos fundos a alocar aos grupos carnavalescos, que devem estar congregados num grémio com autonomia jurídica, patrimonial e financeira. De outro modo, seria também responsabilidade destes órgãos do Estado organizar toda a gama de espectáculos musicais e outros, deixando assim o Carnaval de representar a excepção à regra.
Há tanta mão do Estado no Carnaval que, para este ano, foi proclamada uma rainha que ninguém viu a realizar qualquer tipo de acção promocional do evento. Não venham depois dizer que, por inexperiência ou erro de cálculo, o plano não foi cumprido integralmente mas, como ensaio, satisfaz quem urdiu a ideia. Este Carnaval mascarado de fato e gravata, de bons discursos para a imprensa, de promessas infecundas, não agrega valor e adia a expectativa de voltarmos às nossas tradições seguindo os ventos da modernidade. Já está outra vez montado o cenário para as excelências sozinhas se deliciarem com a destreza dos persistentes que só querem mesmo brincar o Carnaval.