Na semana passada, tive o prazer de assistir ao belíssimo concerto do cantor angolano Kark Sumba. Foi uma verdadeira festa da música, com actuações brilhantes do artista e dos seus convidados, e ainda apimentado com vários momentos de bom humor. Apreciei a forma como o cantor brindou os presentes com breve histórias sobre as circunstâncias em que algumas das canções foram compostas, um privilégio só concedido a quem esteve presente.
O concerto ficou marcado por um momento em que, enquanto cantava uma canção, Kark Sumba, incapaz de conter as emoções, calou-se e simplesmente chorou, copiosamente chorou. Foram vários minutos em que vimos o artista, parado, no meio do palco, a chorar, enquanto, lá atrás, a banda continuava a tocar e a oferecer-nos um espetáculo lindo e comovente, onde a fragilidade da vida e a beleza da arte se fundiam de uma forma brutal.
Lutando para conter as minhas próprias emoções, enquanto ouvia a música tocar, reparei que boa parte da plateia chorava também. Era como se artista e público sentissem e chorassem a mesma dor. Ao meu lado, minha esposa chorava também. Nada disse. Estendi-lhe a mão como que a querer confortá-la. Ela recebeu, mas sei que não foi consolo suficiente e chorou por mais um instante.
Pouco depois, a tentar recompor-se, Kark Sumba explicou que aquela era a música que cantou no dia em que o seu irmão foi a enterrar e deixou no ar a súplica de que, onde quer que ele esteja, esteja bem. Mas nem havia necessidade de explicação. Aquele momento foi como aquelas canções tristes, somente em instrumental, que não precisam de letra, cada um de nós, ao ouvi-la, coloca-lhe a letra que surge na mente e no coração.
A plateia não precisava de explicação porque, no fundo, enquanto chorava com o cantor, chorava as suas próprias dores, as suas próprias perdas. Foi nisso que pensei quando vi a minha esposa a chorar ao meu lado. Também ela tem as suas muitas perdas recentes que ainda doem e doem mais nestes momentos, em que uma música, uma lágrima, ou a dor alheia lhe fazem lembrar ainda mais dessas suas dores. Também eu pensei no irmão que perdi há uns anos.
Nunca lhe cantei uma canção, não sei cantar, mas escrevi-lhe um texto e espero, tal como Kark Sumba, que, lá onde quer que o meu irmão esteja, esteja bem. São tantas as nossas perdas que já vamos perdendo a conta. Crescer é, afinal, esse acumular de dores e de perdas, essas feridas que nunca cicatrizam verdadeiramente. Andamos tão doridos, que quase todos os dias são dias dos nossos finados. “Mas é assim a vida”, dirão alguns.
Mas então e lá fora? Onde as pessoas vivem vidas bem mais longas, tocando com facilidade os extremos da velhice e morrendo tranquilamente embaladas pela certeza de mais nada haver para viver? Será que é mais vida essa vida que se vive lá fora? Porque não podem os nossos viver ao menos um pouco mais? Poupar-nos, ao menos, mais uns anos? Dar-nos o prazer de, a seu lado, vivermos um pouco mais? Perdoem-me, são as emoções a quererem transbordar cá para fora. Já refeito, Kark Sumba continuou o concerto.
Fingindo já não doer a dor que ainda lhe doia, cantou músicas alegres e animadas. O público seguiu-o. Como quem coloca no bolso um objecto para que ninguém mais veja, cada um colocou de volta a sua comoção naquele lugar onde estava antes de ser chamada cá para fora. A plateia, alegremente, cantou, dançou, vibrou e até ofereceu dinheiro ao artista, num gesto de agradecimento pelo bom momento e de encorajamento ao bom trabalho. Sim, é assim mesmo a vida.
Temos de continuar, temos de seguir em frente mesmo quando as feridas ainda doem, colocando as mágoas nos bolsos do coração para que ninguém mais, além de nós mesmos, veja. Pensei nisso e pensei em todas aquelas pessoas que perderam entequeridos à porta de um hospital por negligência médica, os que perderam familiares ceifados por um tiro que nem era para eles, os que perderam os familiares num trágico acidente de viação causado por um motorista embriagado ou imprudente. Onde andam estas pessoas depois da comoção geral que essas notícias causam no princípio? Devem estar por aí, como nós, tentando fazer com que a vida continue.
Vamos todos seguindo, fingindo que já não dói, que tudo é passado. Fazemos um mufete no sábado, convidamos uns amigos, vamos a um concerto. Ouvimos boa música, dançamos, pulamos, vibramos e quem nos vê assim nem imagina as mágoas que trazemos no peito. Perto do fim do espectáculo, Kark Sumba convidou ao palco a cantora Emilie Carlos para juntos cantarem a música “Calm Me Down” (que em Português significa “Acalma-me”), uma das minhas preferidas do autor.
E, enquanto os dois artistas cantavam em ritmo alegre e dançante, senti que essa música podia resumir o concerto e, de uma forma mais abrangente, resumir as nossas vidas. No fundo é isso que andamos a suplicar: acalmem-nos, por favor! Aos nossos políticos, aos nossos médicos, aos nossos polícias, aos nossos irmãos nas estradas, pedimos que nos acalmem. Façam tudo o que puderem para nos poupar de tão precoces e tão dolorosas perdas. Sosseguem- nos o coração. E, talvez, nem seja pedir demais. Apenas pedimos um pouco mais de vida para todos nós. Foi um bom concerto, de nos deixar a desejar pelo próximo.
Aos nossos artistas, ao Kark Sumba, em particular, agradeço pelo grande trabalho que têm feito para acalmar e suavizar as nossas vidas. Obrigado por nos darem bons motivos para dançar, sorrir, vibrar e prosseguir. Obrigado por nos fazerem, mesmo que seja por uns breves minutos ou umas largas horas, esquecer as nossas perdas e nos ajudarem a manter a fé e a esperança e tudo isso é ainda mais marcante porque esses artistas dão-nos tudo isso carregando eles mesmos as suas próprias perdas, as suas próprias dores. Por agora, vou tentar não pensar mais em perdas, vou tentar esquecer as dores e tentar prosseguir e para o fazer canto: “calm me down, calm me down.”
POR: SÉRGIO FERNANDES