Antigamente, nas cidades, nas vilas, nas aldeias e nos kimbos, os cemitérios urbanos e os cemitérios autóctones, eram espaços de total respeito, arborizados, aonde se podia passear, orar, recordar os entes queridos e ter saudades deles.
Alguns cemitérios autóctones de hoje, em lugares mais distantes, no interior de Angola, longe da civilização urbana e longe da poluição moral urbana, continuam a ser espaços de respeito.
Em contraste, nos dias de hoje, século XXI, após quarenta e nove anos de independência, os cemitérios em Angola em quase todas as cidades e vilas, exceptuando um cemitério denominado “Alto das Cruzes” em Luanda, são lugares muitas vezes vandalizados e semi-abandonados e após uma visita, tal como nos dia dos mortos, 02 de Novembro, não se deseja voltar pois provocam indignação.
Se o cidadão não sabe respeitar os mortos, saberá respeitar os vivos? No ano de 2018, numa visita ao cemitério de SANTA ANA, em Luanda, aonde a classe média encontra ali sua última morada, houve um velório.
Na noite anterior, este velório foi feito com toda a dignidade no mausoléu anexo e no dia seguinte, pelas 11 horas, foi feito o enterro. Como o automóvel funerário que transportava o falecido não podia entrar no cemitério, o corpo foi transladado para um carro de transporte manual apropriado para este tipo de evento.
No caminho até onde seria enterrado o falecido, à entrada do cemitério, não se viam espaços ajardinados ao redor das vias e viamse poucas árvores protegendo as campas e as pessoas do calor.
De repente, enquanto se caminhava atrás da urna até ao local do enterro, o carro manual que transportava o corpo parou. Foi informado aos familiares e acompanhantes do falecido que o corpo iria ser enterrado à distância de cem metros daquele local, por detrás das campas que se viam ali e ao longe.
Alguns homens pegaram o caixão aos ombros pois as alças do caixão não tinham segurança suficiente para transportá-lo nas mãos e todos seguiram atrás. Mas não se viam caminhos por onde as pessoas pudessem passar pois todos os espaços entre as principais campas estavam ocupadas por outras campas simples de terra e cimento e os caminhos desapareceram completamente e aquele espaço parecia abandonado.
Preocupados pela falta de uma via, tentou-se vislumbrar uma solução para levar o ente querido falecido até à sua última morada mas, para infelicidade dos acompanhantes, constatou-se que a única solução seria continuar a transportar o caixão pesado nos ombros e passar por cima das campas, aos trancos e barrancos, e as pessoas estavam sujeitas a quebrar alguma perna ou a cair no chão, no meio daquela terra abandonada, ressequida e sem flores e sem uma relva que refrescasse este caminho dolorido.
Note-se que as pessoas que acompanhavam o enterro estavam bem vestidas e haviam senhoras que calçavam sapatos de tacão alto, como é normal, em respeito e homenagem ao ente querido e porque supunham que o cemitério de SANTA ANA, localizado em zona nobre de Luanda estaria cuidado certamente.
Com as pessoas a passarem por cima das campas, sem respeito pela última morada dos cidadãos falecidos, com o caixão subindo e descendo, quase caindo ao chão, com algumas pessoas a magoarem-se e cheios de suor e lágrimas e sujos de terra, lá se conseguiu chegar à cova aonde seria enterrado o ente querido.
O buraco já estava aberto e com terra à volta e não se conseguia passar por cima desta terra senão enterravam-se ali os pés e quem tentou passar saiu todo enlameado. A Administração do cemitério nem sequer orienta os funcionários a abrir correctamente uma cova, colocando a terra apenas em dois lados ou em um, para se enterrar o caixão com segurança e sem sem perigo de se cair dentro.
O sol e o calor já estavam a escaldar e o padre quase caiu no buraco antes de iniciar a cerimónia de despedida do falecido. Quem assistia a tudo isto e percebia toda esta realidade, sentiase constrangido, humilhado e indignado pois havia completa falta de dignidade para com os mortos e para com os vivos.
Um pai, uma mãe, um parente , põe um filho ou uma filha no mundo, cuida dele, sacrifica-se por ele, luta para lhe oferecer o melhor com o máximo de dignidade possível para que seja um cidadão respeitado, estes cidadãos lutam por seu país, por sua nação, trabalham, sacrificam-se e, quando chega a hora de ir embora, são enterrados desta forma indigna.
Como fica um pai quando, após tantos anos a proteger seu filho ou filha, de repente, sem nada poder fazer, vê seu filho ou filha a ser abandonado ou largado num buraco sem dignidade, num buraco aonde ficará definitivamente, sem um jardim a perfumar sua campa, sem um caminho para se poder voltar quando se quiser prestar homenagem ao ente querido, sem uma árvore a fazer sombra, sem um passarinho a cantar ao redor …… Aonde está a dignidade dos vivos e dos mortos angolanos, dos entes queridos que já se foram ou ainda se vão? Que país somos? Uma grande parte dos cidadãos angolanos estão habituados a frequentar os melhores lugares na Europa, na América e na Ásia, conhecem os cemitérios em outros países, conhecem o viver de outros povos, e é um povo cosmopolita e tem uma cultura global.
Quando este angolano que se considera cidadão do mundo regressa ao lar e constata que o lugar aonde seu ente querido foi ou vai ser enterrado, e ele também, está sujo, desordenado, mal cuidado, deixou de ser sagrado, etc., ele não se indigna? A vida continua a passar agora, neste momento em que se escuta ou lê este artigo e pergunta-se aqui e agora se os mortos angolanos, cidadãos, nada são, nada representam, apenas já se foram como a chuva sem deixar rastos? E como ficam os cidadãos que vislumbram e desejam uma nação nova mais sorridente e bela, mais desenvolvida? Simplesmente os entes queridos foram-se e nada mais importa, deixaram de ser incómodos ou será que o lamento, o choro nas despedidas não é verdadeiro? O cemitério de SANTA ANA em Luanda e todos os outros cemitérios em Angola são fáceis de serem melhorados e deve-se dar mais dignidade e respeito voltando a serem lugares sagrados.
Os cemitérios também deveriam ter crematórios aonde os ossos dos mortos são cremados após estarem muitos anos debaixo da terra e assim darem lugar a outros falecidos e estas cinzas podem ficar guardadas em gavetas e também porque há cidadãos angolanos e outros que preferem ser cremados pois consideram o fogo sagrado e não querem apodrecer na terra, conforme se faz há milhares de anos nas culturas orientais e agora também nas culturas ocidentais.
Se não houver dignidade nos cemitérios angolanos, nunca este país poderá atrair investidores externos nem desenvolver sua economia pois isso denota falta de organização.
Pelo menos um cemitério em cada Província deve ter um crematório pois isso facilita o controle de espaços e é a maneira mais correcta ambientalmente e moderna para se tratar dos entes queridos que falecem.
As campas mais antigas e as campas que estão desordenadas, seriam abertas com toda a dignidade, seriam recolhidos os ossos e cremados e as cinzas entregues aos familiares para serem guardadas definitivamente nas gavetas do cemitério podendo ficar ali muitos anos. Dessa forma os caminhos dos cemitérios seriam novamente desimpedidos e só poderiam ser enterrados os falecidos nos espaços permitidos.
Os cemitérios poderiam voltar a serem reflorestados e limpos e dessa forma simples, haveria maior dignidade e respeito para com os entes falecidos e os vivos. Os cidadãos angolanos devem indignar-se em nome de seus entes queridos e em respeito àqueles que um dia trabalharam por esta Nação.
Como estão os cemitérios do Lubango, o novo cemitério com crematório que começou mas não acabou, o cemitério da Chibia e tantos outros, o cemitério da Humpata, etc.? Os cemitérios em Angola têm de voltar a ser lugares sagrados e respeitados, pois sem respeito pelos mortos não há respeito pelos vivos.
Por: VALDEMAR FERREIRA RIBEIRO
*Economista, Empresário Industrial, Ambientalista