No ano passado nos propusemos a publicar neste canal uma série de artigos que visam refletir e contribuir na reflexão sobre a relação de Angola com a União Africana, numa altura em que o país se preparava para assumir pela primeira vez na sua história político-diplomática a presidência rotativa da União Africana.
Neste ano, 2025, este desiderato foi almejado e Sua Excelência Presidente João Lourenço é efetivamente presidente desta organização regional e levanta a bandeira de Angola a partir do cadeirão máximo no hemiciclo da organização sobre o olhar de outros Estados.
O texto de hoje pretende um olhar mais introspetivo e aprofundado, na medida em que reflete sobre um dos grandes dilemas vividos na UA, a integração dos Estados e a partilha das suas soberanias.
À luz do realismo, os Estados soberanos são os principais actores no sistema internacional, o exercício da sua soberania permite colocar-se acima de quaisquer poder e instituições no plano interno e em posição de igualdade no plano internacional.
E isto se reflete na acção e na razão do Estado ao decidir, por exemplo, por via da ratificação de acordos, aderir a determinadas organizações internacionais. Essa adesão, dependendo do seu grau, pode gerar uma perda de soberania, na medida em que os Estados abdicam do sua capacidade de deter exclusivamente o poder soberano em detrimento da organização que integram.
No entanto, a integração regional constitui a estratégia para alavancar o desenvolvimento económico, político e social de África desde os tempos póscoloniais.
A criação de organizações regionais, como a União Africana (UA), a Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC), etc., reflete o esforço para a promoção da unidade e a superação dos desafios estruturais que dificultam o progresso do continente.
Ademais, essas iniciativas enfrentam o dilema fundamental de qualquer organização supranacional: a necessidade de aprofundar a integração versus a preservação da soberania dos Estados-membros.
Soberania como pilar histórico
A soberania é um conceito profundamente arraigado nas políticas dos Estados africanos. Após décadas de colonização, a independência foi conquistada com grande custo humano e social, o que consolida a ideia do exercício exclusivo da soberania como um garante da autonomia, da ordem, da estabilidade e da identidade nacional.
Os Estados africanos têm sido historicamente cautelosos, mas também contidos, ao cederem poder e soberania às organizações supranacionais, sob pretexto de temer uma nova forma de dependência ou perda de autonomia.
Por exemplo, a UA busca promover políticas continentais unificadas, mas a implementação efectiva muitas vezes é limitada pela relutância dos Estados-membros em abrir mão da sua autoridade em questões sensíveis, como a segurança, o comércio e a governança.
Essa tensão é especialmente evidente em situações de crises políticas, onde a UA frequentemente enfrenta obstáculos para intervir de forma decisiva em conflitos internos dos países-membros.
As actuais dinâmicas no sistema internacional, mais concretamente na Europa onde se vivencia o conflito russo-ucraniano caracterizado, entre outros aspectos, pela incapacidade e ineficácia da União Europeia na gestão e resolução deste conflito, mentam cada vez mais os receios das lideranças africanas quanto ao modelo e o grau de integração a adoptar.
Vale lembrar que a UE é a principal referência de integração política e económica. Aliás, tem-se dito que o principal desafio da UA a nível de integração é evoluir ao mesmo estágio da UE, o que no entendimento de muitos, significará replicar inclusive as dificuldades de gestão e resolução de conflitos, devido à redução das capacidades de actuação unilateral e soberana dos Estados-membros.
A integração como necessidade estratégica
Por outro lado, a integração regional é vista como indispensável e irreversível para enfrentar desafios comuns, como o subdesenvolvimento económico e social, os conflitos armados e a vulnerabilidade face às dinâmicas globais. Ademais, o art.25.* do Acto Constitutivo da UA consagra e destaca “…a integração regional deve ser elevada à condição de prioridade(…)”, ou seja, independentemente da liderança, ela constitui um desafio permanente, que se actualiza e consolida em função dos progressos alcançados. E dado o seu carácter permanente, o Presidente João Lourenço deve reservar alguma atenção nesta matéria durante o exercício do seu mandato.
A Zona de Livre Comércio Continental Africana (AfCFTA) constitui uma oportunidade ao pretender criar o maior bloco comercial do mundo em termos de número de países participantes. No entanto, a implementação plena dessa iniciativa exige harmonização de políticas económicas e alfandegárias, o que depende de concessões significativas por parte dos Estados-membros.
Além disso, questões transnacionais como mudanças climáticas, migração irregular e terrorismo, evidenciam a necessidade de uma acção coordenada que transcende as fronteiras nacionais. Sem essa cooperação, as soluções locais frequentemente se mostram insuficientes ou contraproducentes.
O dilema na prática
O dilema entre integração e soberania se manifesta de forma mais clara nas áreas de segurança e governança. A CEDEAO, por exemplo, foi muito elogiada por suas intervenções em crises políticas, como na Gâmbia em 2017, quando forçou a saída do então presidente Yahya Jameh.
Contudo, essas acções muitas vezes geram críticas sobre a legitimidade de interferências externas, mesmo quando autorizadas por tratados regionais.
Outro exemplo é a UA, que enfrenta desafios para implementar políticas de segurança colectiva, como a Força Africana em Espera (ASF). Enquanto alguns Estados apoiam uma abordagem continental para a resolução de conflitos, outros resistem à ideia de tropas estrangeiras no seu território, mesmo em contextos de crises graves.
O conflito no leste da RDC ajuda a elucidar esse desafio. Neste sentido, é imperativo desconstruir a ideia que se apregoa sobre o atraso no desenvolvimento e na integração regional como resultado das relações desajustadas do continente com forças estrangeiras que procuram influenciar as políticas económicas e as direções dos Estados africanos.
É igualmente necessário promover um ambiente político e estrutural que facilita as aspirações de desenvolvimento e integração com segurança e estabilidade.
Caminhos
Para superar esse dilema, é crucial que as organizações regionais africanas construam confiança mútua entre seus membros e promovam um senso de pertença colectiva respeitando os limites da diversidade étnica, característica do continente. E isto pode ser alcançado por meio de:
1. Governança Inclusiva: ao garantir que as decisões regionais sejam tomadas com base em processos democráticos e transparentes, ao envolver todos os Estados-membros em condições de igualdade.
2. Gradualismo: é necessário priorizar uma integração progressiva e focar em áreas menos sensíveis, como infraestruturas e comércio, antes de abordar questões mais complexas como segurança e governança.
3. Capacitação Institucional: fortalecer as organizações regionais para que possam actuar como mediadoras imparciais, oferecendo garantias aos Estados-membros de que as suas soberanias serão respeitadas.
4. Cultura de Cooperação: investir na educação e na diplomacia cultural para promover uma identidade africana que valorize tanto a diversidade quanto a unidade.
Conclusão O dilema entre integração e soberania nas organizações regionais africanas não é um obstáculo insuperável, mas sim uma característica inerente ao processo de construção de uma África mais unida e resiliente.
Ao equilibrar esses dois princípios, os líderes africanos podem criar estruturas regionais que respeitem as particularidades nacionais ao mesmo tempo que promovem soluções colectivas para os desafios do continente.
A chave está em reconhecer que a soberania não precisa ser um impedimento à integração, mas pode ser um pilar que sustenta uma cooperação regional verdadeiramente africana que respeita os limites da diversidade étnica e da legitimidade política.
Por: JULIÃO LOMENHA