Ainda não é dia. Estou desperto a olhar para a mulher que ainda dorme. Hoje é finalmente o dia do amor, mas eu não penso no amor, penso em dinheiro.
Pela mente, passamme os planos que tracei, os presentes que quis oferecer, as infinitas possibilidades de a fazer feliz num dia como esse.
Os filmes e as novelas ensinaram-nos, ao longo dos anos, o que é o romantismo. Portanto, o dia dos namorados deve começar com um pequeno-almoço na cama.
A bandeja deve estar recheada de croissants, torradas, queijo, caviar, sumo natural e frutas.
É assim que ditam as regras do romantismo à brasileira (ou à Hollywood), atropelando e arrastando para a rua da amargura toda a minha realidade que teima em dizer-me para ser muito mais modesto.
Por isso, estou aqui, madrugada adentro, a pensar, a sofrer. Naquilo que posso, nem torradas, nem queijo, nem sumo.
O salário atrasou e, quando chegou, mal serviu para eliminar de vez as dívidas que se acumulam e me sufocam.
O pouco que restou, os ATM’s não me dão. Dizem-me sempre que estão sem sistema, sem dinheiro, nem papel.
Assim, na bandeja, nem mesmo a batata-doce ou a mandioca como alguém sugeriu um dia que substituíssem o pão, mas há alguma coisa para substituir o dinheiro que tudo compra até mesmo o romantismo? O dia dos namorados chega sempre como um ladrão destemido: com estrondo.
Sabe ao que vem, mais para testar a nossa capacidade financeira do que propriamente para nos obrigar a demonstrar o nosso amor, e chega espalhafatoso. Incomodam-me, por isso, os arautos deste dia.
São como aqueles rapazes agitadores dos bairros que nos empurram para uma luta mesmo sabendo que vamos perder, mas fazemno apenas pelo simples prazer de assistirem a uma luta.
Os arautos, muito antes do Dia D, vão às rádios e às Tv’s anunciar galas para os amantes, jantares em resorts, concertos românticos com cantores famosos e, até, viagens ao estrangeiro com descontos que parecem nada descontar.
Espalham com orgulho estas outras possibilidades para este dia. Evito a televisão, amargura-me a oferta de tantas possibilidades e saber que nenhuma delas esteja ao meu alcance.
E não me digam que há ofertas para todos os bolsos porque parece que para o meu nada foi encontrado. Só me resta esperar que a mulher também não tenha assistido à televisão por estes dias. Penso, mas depois me sobressalto.
E se viu? Será que está à espera de um convite para um destes eventos pomposos? Mas os arautos estão também nas ruas.
Naquelas mil e uma bancadas que ninguém sabe ao certo de onde vêm, mas que se espalham pela cidade, por todas as avenidas, ruas, becos e esquinas, como se subitamente todo o mundo estivesse transformado em vendedor de artigos para o dia dos namorados.
Falo daquelas bancadas cheias de ursos de todos os tamanhos, lingeries vermelhas, sacolinhas de presentes e caixas de presentes misteriosos que nós sabemos que contêm perfumes, chocolates, bijuterias e mais lingeries.
Estão espalhadas pelas ruas justamente para não deixar que nos esqueçamos que o dia dos namorados se aproxima e que o amor custa caro.
Sei que estas a mulher, com certeza, viu. E, tendo visto, haverá algo de que tenha gostado? Há tanta coisa para as mulheres que duvido que não que haja nestas bancadas alguma coisa que lhe agrade. Nestes dias, fui chegando devagar para saber os preços.
“Tudo está caro!” Era o que sempre me diziam as vendedeiras depois da minha involuntária exclamação ao ouvir os preços, até dos presentes mais pequenos e irrelevantes como um urso que cabia todo na palma de uma das minhas mãos.
Mas nem esse miniursinho posso comprar e, se pudesse, a mulher ficaria feliz com um presente tão insignificante? As horas vão passando e eu tentando antecipar a frustração da mulher.
Não. Não me esqueci do dia do amor como tantas vezes finjo. E, ainda que quisesse, estão os memeiros das redes sociais com memes e piadas sobre o dia dos namorados ainda mais ferozes do que os anúncios publicitários.
Antecipam o que vai acontecer neste dia, os amores, as traições, as decepções, brincam com quem vai e com quem não vai receber presente e, nestas piadas, muitas vezes de mau gosto, vão determinando quem ama e quem não ama, quem é amado e quem não é, e até mesmo a medida do amor verdadeiro.
Como não me assustar e retrair quando vejo um vídeo de uma mulher a rejeitar um carro oferecido pelo namorado apenas por não ser o que ela esperava? “Esse tempo todo à espera e é isso o que compraste?” Pergunta a mulher já se retirando irritada.
Só faltou dizer “Tu não me amas de verdade”. E, se um carro moderno não serve como presente, imagina um ursinho que cabe na palma de uma mão! Desta forma, os memeiros nos traumatizam e, ao mesmo tempo, nos alertam: são estes os tempos em que vivemos, em que o amor e o romantismo medemse na quantidade e no valor dos presentes, no glamour dos sítios a que se pode ir, na sumptuosidade da gala a que se pode assistir.
É tão pouco o que posso fazer que, já me vejo humilhado quando a mulher, no dia seguinte, sentada na roda com as amigas e colegas, para fazerem o balanço do dia dos namorados, dizer que recebeu apenas um micro-urso e nada de pequeno-almoço na cama, nem um bouquet de dinheiro no serviço, nem uma ida a um restaurante, e nem sequer uma noite num hotel luxuoso.
Será humilhante para ela, mas tem sido muito mais para mim, que sei que, em surdina, sou acusado de não ser romântico, de não amar a minha mulher, ou de, no mínimo, não saber demonstrar esse amor.
Não, meu amor. Não me esqueci deste dia. Nem tão pouco o odeio. Pelo contrário. Há dias para tanta coisa que acho bonito que haja um dia para os namorados, um dia em que as pessoas que se amam se lembrem deste sentimento, lembrem-se dos porquês que um dia decidiram unirse.
O problema é que estou cada vez mais pobre e a miséria vai roubando da vida um romântico para o substituir por um malabarista sem génio e sem graça.
Vou tentando fazer malabarismos com o pouco dinheiro que me vem parar às mãos. Compro o arroz ou o urso? A massa ou a bijuteria? Os medicamentos ou os chocolates? E essas são as únicas coisas em que posso pensar, pois nem vivendo eu duas vidas paralelas, com este salário, chegaria a obter as outras.
Por isso, gosto mais do Natal porque para este, ao menos, tenho um subsídio especial que me ajuda a disfarçar a pobreza, além de que as igrejas oferecem uns programas e umas noites de vigília para as quais não mais preciso de pagar além de umas ofertas que nem sequer têm valor estipulado.
Mas hoje não é Natal. Hoje é dia dos namorados e todas as demonstrações de amor têm o preço estampado na factura que, além de caro, ainda paga IVA. Olho para a mulher que ainda dorme. São quase quatro da manhã, em breve o despertador vai tocar.
Vou eu despertá-la. Nos vamos levantar apressados sem tempo sequer para um beijo, enfrentaremos a escuridão e o silêncio das ruas, rezando a Deus para que nenhum larápio nos venha roubar o pouco que ainda temos.
Vamos enfrentar as lutas nas paragens e também rezar para chegarmos cedo ao trabalho, na esperança de que tantas lutas rendam alguns tostões no fim do mês.
No final do dia, depois de outras lutas e engarrafamentos, chegaremos a casa tarde na noite, cansados, contando as batatas e as mandiocas para mitigar a fome e nos deitaremos, sem beijos, nem carinhos, para ganhar forças para um novo dia de batalha.
Não, não nos esquecemos do dia do amor, mas, em tempos de miséria, não há tempo, nem dinheiro para o romantismo. E, assim, vai o amor se tornando cada vez mais um luxo para aqueles que o podem pagar.
Por: Sérgio Fernandes
Escritor