Em 2002, antes dos acordos assinados com a China com vistas a reconstrução de Angola e antes do Ocidente optar por não realizar a indispensável Conferência Internacional de Doadores programada para acontecer em Bruxelas (em 2004), para ajudar o nosso país a reerguer-se de uma guerra fratricida que foram injectados milhões de dolares e euros para a campanha militar da UNITA (condenada pelas Nações Unidas desde 1992 e pelos próprios Estados Unidos quando viram os seus interesses afectados).
Alguns estrategas angolanos reflectiram profundamente sobre como o país deveria agir nas relações com as potências internacionais no pós-guerra.
O coronel e estratega Justino da Glória Ramos, na época assessor político-diplomático do Ministério da Defesa, aconselhava que não era “conveniente conferir-se ascendente político a quaisquer dos potenciais parceiros estrangeiros na expectativa de que estes venham a servir de entidade protetora no cenário internacional, mas sim criar e preservar um equilíbrio razoável dos interesses estrangeiros no país, de modo a que a ascendência circunstancial de alguma potência em relação a Angola possa ser determinada conjunturalmente pela vontade política do Governo angolano.”
Esta abordagem do ideário da nossa política externa no pósguerra está enraizada na noção, convicção, doutrina, ou seja, na construção de uma narrativa política disseminada como ideia ou facto considerado indiscutível:
Angola não é um actor passivo no “jogo” das grandes potências em África! Trata-se de uma abordagem soberanista, que concebe o Executivo angolano, representante do povo dentro e fora das fronteiras nacionais, como o principal responsável pelo rumo do nosso Estado na relação que estabelece com o mundo, com destaque, é claro, para as grandes potências.
Além de soberanista, é uma abordagem pragmática, que considera fundamental a harmonia dos nossos valores, princípios, normas e interesses na relação que estabelecemos com os diferentes actores internacionais para nosso próprio benefício.
Hoje pode parecer que Angola é um Estado pró-Ocidente: As condenações oficiais à invasão Russa na Ucrania e as votações em desfavor da Rússia na Assembleia Geral da ONU; a contratação do eficaz e eficiente lobby da Squire Patton Boggs para representar interesses governamentais nas terras do Tio Sam; a parceria militar que será assinada em Janeiro; a vinda, sem precedentes, de delegações de altos responsáveis Norte-Americanos a Angola, destacando a recentemente liderada por Austin e a que acontecerá no final do próximo mês, a primeira para abordar especificamente as oportunidades de parceria no sector agrícola; a potencial visita de Joe Biden no nosso país e a receção de João Lourenço na Sala Oval; as aproximações com a União Europeia (desde 2018, fundamentalmente) e bilateralmente com países europeus como Espanha, Alemanha, França, Portugal, Itália, Inglaterra, mas também outros do Ocidente Alargado como o Japão ou a Coreia do Sul.
Mas só parece. Em várias ocasiões, altos responsáveis da política externa de Angola deixaram claro que “o Executivo que legitimamente representa o Estado angolano é pró-Angola”.
Por conseguinte, como sublinhou o Presidente João Lourenço numa entrevista, “o país está aberto para todos” e “há espaço para todos” os actores internacionais que queiram estabelecer ou aprofundar as relações com Angola.
Sim, estamos a aprofundar as relações com o Ocidente alargado. Mas também é verdade que estamos a incrementar as relações com a China (potência com posições mais adequadas para a reconfiguração de uma ordem internacional mais equitativa e adequada para a emergência do Sul Global), a Turquia, o Brasil, a Índia, países Árabes como o Egipto, Emirados Unidos, Arábia Saudita e parceiros regionais da África Subsaariana como a RDC, a África do Sul, o Ruanda, Quénia, entre outros.
Quando Assis Malaquias, cientista político angolano radicado nos Estados Unidos e antigo dirigente da UNITA, escreveu o seu célebre texto sobre o pragmatismo da política externa de Angola, argumentou que a constante capacidade de recalibração na relação do governo e do MPLA com o exterior ou as entidades estrangeiras em Angola era um factor de sucesso da influência de Angola e da consolidação (ou sobrevivência, como ele escreveu) do regime.
João Lourenço, portanto, está a seguir uma matriz estabelecida desde a fundação de Angola como um Estado soberano. Um dos eventos mais curiosos foi que, em plena guerra fria, as tropas cubanas (pontas de lança dos interesses da União Soviética) chegaram a proteger bases de empresas petrolíferas americanas em Angola – apesar da hostilidade característica do conflito bipolar que opunha a União Sovietica/Cuba aos Estados Unidos/Ocidente– por orientação do então Presidente da República e Comandante em Chefe das FAPLA, Agostinho Neto, que percebia a relevância da presença do empresariado americano para a exploração e o fortalecimento do nosso potencial petrolífero no referido sector com seu apurado senso estratégico, apesar da sua inclinação pelo Bloco do Leste devido ao apoio recebido na luta de libertação nacional e afinidades ideológicas progressistas e de emancipação contra a opressão colonial (e todas as outras formas de opressão) mais propensas à doutrina marxista-leninista.
Isto aconteceu a despeito de Angola e os EUA, naquela época, não terem uma relação bilateral (os EUA sequer reconheciam a independência de Angola). As relações com o Ocidente sempre desafiaram o nosso pragmatismo.
Assis Malaquias entendia, em 2011, que era o que faltava aprofundar. Foi estabelecida a normalização das relações diplomáticas em 1993, chegou-se à assinatura em 2012 de uma Parceria Estratégica, mas não obstante alguns resultados positivos e todo o empenho do gabinete do Presidente José Eduardo dos Santos, os seus auxiliares ministeriais, o lobby e assessoria especializada americana contratada para o efeito, incluindo a Squire Patton Boggs, as tensões, a sabotagem ocidental e ingerência nos assuntos internos no nosso país e questões ligadas ao ambiente de negocios, sempre tornaram as relações com o Ocidente agridoce e o potencial da relação ficava aquém do explorado.
Com João Lourenço isso mudou significativamente. Depois de quatro anos de intensa diplomacia económica e de uma reavaliação da maneira como olhávamos para o Ocidente e de como poderíamos ganhar com eles, foram dados vários passos para o fortalecimento das nossas relações.
Certamente, os ganhos desta parceria são e serão imensos. No entanto, não devemos aceitar, que o Ocidente, por meio das empresas que representam os seus interesses geopolíticos e económicos, das suas lideranças e instituições, nos pressione, como contrapartida ao apoio ao desenvolvimento, a adotar uma postura que não esteja de acordo com as nossas pautas internacionais, como o respeito à soberania nacional, integridade territorial, a interdependência entre os Estados, o predomínio da diplomacia sobre a guerra e o respeito ao direito internacional.
O Ocidente acredita ter o direito de fazer o que nós – na sua condição – não faríamos a eles, como receber líderes da oposição ocidental para discutir a cooperação bilateral entre os Estados soberanos, com relações bilaterais vibrantes e a situação doméstica de um determinado país do Ocidente.
Os Estados Unidos fizeram isso connosco neste ano ao receber Adalberto Costa Júnior, lider da UNITA, no Departamento de Estado. A Alemanha fez o mesmo antes das eleições, recebendo-o no Ministério dos Negócios Estrangeiros (um órgão do Estado alemão, não partidário).
A Delegação da União Europeia, as várias embaixadas ocidentais, com frequência, fazem o que nós não faríamos a eles, com base numa legitimidade internacional em decadência, a chamada “legitimidade hegemónica da unipolaridade”, como Charles Kindleberger designou.
O Executivo angolano está interessado em incrementar as relações com o Ocidente, isto é notório. Este momento é uma oportunidade de o Ocidente retratar-se, tendo em conta o seu papel perverso durante a guerra civil e o engajamento tímido para facilitar a reconstrução de Angola.
A China, parceiro muito mais confiável e cujo crescimento e aumento da influência global incomoda o Ocidente está à espreita. E Angola ainda não está a explorar efectivamente a Iniciativa Cinturão e Rota…
Por: HOTALIDE CORDEIRO DOMINGOS